A história feliz de 12 cães que se viram livres da leishmaniose
Doença afecta também os seres humanos, registando-se por ano, em todo o mundo, 1,3 milhões de novos casos e 20 mil a 30 mil mortes.
Nem sempre o esforço de anos de investigação termina com uma descoberta. Um final feliz. No caso do trabalho de que vamos falar o esforço acabou recompensado. Um consórcio internacional – que incluiu o Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S), no Porto – encontrou uma molécula, entre milhares que vasculhou, capaz de tratar a leishmaniose de forma eficaz, menos tóxica e mais barata do que os tratamentos disponíveis. Os 12 cães que tinham esta doença provocada por parasitas ficaram completamente curados e já foram adoptados, revela o i3S.
Além dos cães, o principal reservatório dos parasitas da leishmaniose, nós próprios podemos ficar infectados. Se muitos cães estiverem infectados, isso constitui um risco para os humanos. A doença pode ser provocada por várias espécies de parasitas microscópicos do género Leishmania, transmitidos pela picada de moscas-da-areia (flebótomos), que sugam o sangue. Os cães são picados pelos insectos, que depois picam os seres humanos e lhes transmitem o parasita. Pode também ser transmitida por utilizadores de drogas injectáveis infectados, na partilha de agulhas, e ainda por dadores de sangue e de órgãos infectados em países onde o despiste da infecção não é obrigatório, como é o caso de Portugal. Se não for tratada, a infecção pode ser fatal para o cão e os seres humanos.
O novo fármaco resulta de um projecto de investigação chamado NMTryp (New Medicine for Trypanosomatidic Infections), que a União Europeia financiou com 7,6 milhões de euros em 2014. Teve como alvo a leishmaniose, mas também a doença de Chagas e a doença do sono. E envolveu 12 parceiros (nove instituições académicas e três empresas) europeus e de países onde estas doenças são endémicas (Itália, Grécia, Portugal, Sudão e Brasil), sendo coordenado por Maria Paola Costi, da Universidade de Modena, Itália. De Portugal, participou o grupo Doenças Parasitárias do i3S, liderado por Anabela Cordeiro da Silva.
Cinco anos depois, a equipa anuncia em comunicado – ainda falta enviar o artigo científico para publicação numa revista científica – os bons resultados a que chegou para a leishmaniose. Para tal, vasculhou cerca de 500 mil moléculas até chegar a um composto químico que se revelou eficaz em 12 cães infectados. Pelo caminho, houve muito trabalho – desde a síntese química de moléculas até testes in vitro em células, depois em ratinhos e hamsters e, só mais tarde, nos cães. No i3S, relata Anabela Cordeiro da Silva, fizeram-se testes in vitro e em ratinhos.
A fase dos testes nos cães decorreu em Espanha, com o colega de equipa da Faculdade de Veterinária da Universidade Complutense de Madrid, José Alunda. Doze Beagles foram tratados com o novo composto químico, enquanto a outros quatro foi administrado um composto à venda no mercado para a leishmaniose (miltefosina, também usada em seres humanos). Outros seis cães serviram de controlo da experiência, mantendo-se infectados sem tratamento (mais tarde foram tratados, por questões éticas).
Resultado: Berta, Bimba, Cañita, Gala, Charlize, Chula, Frida, Ginger, Tula, Lola, Gilda e Rubia ficaram totalmente livres da doença graças ao novo composto. Depois do tratamento, os cães ainda estiveram quase um ano no hospital veterinário – “para termos a certeza de que estavam sem problemas”, conta Anabela Cordeiro da Silva. Já vai quase um ano de adopção, com a condição de continuarem a ser seguidos pelos investigadores.
“Qualquer tratamento disponível no mercado não é 100% eficaz, tanto nos cães como nos humanos. Há sempre recidivas e é preciso fazer um novo ciclo [de tratamentos]”, relata a investigadora, explicando que, para tratar as pessoas, na Europa se usa mais a anfotericina B. “A pessoa faz o tratamento e a doença não tem manifestação clínica. Não quer dizer que o parasita não esteja escondido, dormente”, acrescenta Anabela Cordeiro da Silva. “É uma doença silenciosa. Manifesta-se quando há um comprometimento imunitário” – por exemplo, em pessoas infectadas pelo vírus da sida, transplantadas ou a fazer tratamentos do cancro.
“A vantagem do novo composto, além da eficácia, é a não toxicidade. Enquanto os compostos no mercado causam vómitos, falência renal, lesões hepáticas, diarreias, perda de peso, este composto não mostrou ser tóxico tanto nos ratinhos como nos cães”, sublinha a investigadora.
O novo composto está patenteado na Europa e nos Estados Unidos e decorrem negociações com a indústria farmacêutica veterinária, acrescenta. “Obtivemos um composto de síntese química, logo muito mais barato, que funciona, é de administração oral e tem menor toxicidade para os animais do que os fármacos disponíveis no mercado”, resume Anabela Cordeiro da Silva no comunicado. “Não tenho dúvidas de que este composto será brevemente comercializado para os cães.”
Ensaios clínicos à espera
E nos humanos? Para já, Anabela Cordeiro da Silva diz que a equipa não teve financiamento para essa parte da investigação, pelo que os ensaios clínicos de fase 1 (sobre a segurança) do novo composto químico estão em suspenso.
Além de Portugal, Espanha, Itália e Grécia são zonas de risco para a leishmaniose. Em Portugal, a leishmaniose é endémica porque há um grande número de cães infectados. Os focos de maior risco encontram-se sobretudo no Douro, na área metropolitana de Lisboa, incluindo Setúbal, e no Algarve, onde um em cada dez cães pode manifestar a doença. Mas nas Beiras, Trás-os-Montes, Ribatejo e Alentejo também há focos de infecção. Ainda assim, há pouquíssimos casos humanos de infecção, nota o comunicado. Embora subestimados, os dados das administrações regionais de Saúde indicam que, por exemplo, entre 1999 e 2009 se registaram 375 casos em humanos, em particular na região de Lisboa e Vale do Tejo.
Nada comparável com o resto do mundo: por ano, registam-se 1,3 milhões de novos casos e 20 mil a 30 mil mortes. É em países como a Índia, Bangladesh, Afeganistão, Paquistão, Brasil ou Sudão que a doença mais afecta cães e pessoas.
Por isso, a notícia de que 12 cães ficaram totalmente livres desta doença graças a um novo composto é uma questão de saúde pública e também boa para os humanos.