Um mundo de pernas para o ar
A Amazónia tornou-se agora o símbolo maior do combate contra a criminalidade ambiental
Iniciada ontem, a cimeira do G7 em Biarritz deverá reflectir, salvo alguma surpresa surreal, o absoluto desatino a que chegou o estado do mundo. Não só daquele representado na reunião – o que já não seria pouco… – mas de todo um planeta, que nunca vimos assim desordenado, errático, caótico, perdido nos jogos de guerra em que não é possível haver ganhadores (como acontece com os Estados Unidos e a China) ou mergulhado numa espiral cada vez maior de crises sem solução.
Tudo aquilo que deveria ser claro, óbvio, transparente aos olhos de qualquer mortal tornou-se um enigma indecifrável ou uma monstruosidade que escapa à mais sofisticada compreensão humana: é o caso-limite entre todos das alterações climáticas – que este Verão de canículas históricas ilustrou nas mais variadas latitudes e teve agora o seu momento culminante na devastação sem precedentes do maior pulmão da Terra: a Amazónia.
Siga-se o ainda breve percurso do predador Bolsonaro e repare-se como num espaço de tempo tão curto a tragédia política brasileira se pôde converter na tragédia ecológica mais assustadora de que há memória recente. Só que antes de Bolsonaro já existia Trump e as suas primitivas teorias negacionistas das alterações climáticas que o levaram a rejeitar o acordo de Paris. Aliás, basta seguir os tweets de Trump – irresistivelmente grotescos e até por vezes contraditórios num espaço de breves instantes – para concluirmos como a demência e a imbecilidade podem atrever-se a governar o mundo.
Impulsionado pela tragédia amazónica, Emmanuel Macron insistiu em inscrever as questões climáticas como ponto prévio da agenda do G7 de Biarritz. Sem ilusões, claro.
Mas, pelo menos, para marcar claramente as fronteiras das responsabilidades que tendem a diluir-se no habitual unanimismo de fachada destas cimeiras. Macron foi também criticado por Merkel – e por António Costa… – quando propôs aplicar sanções ao Brasil, pondo mesmo em causa o recentemente negociado acordo entre a União Europeia e o Mercosul. Ora, a questão é essa: ou se passam em branco os crimes contra a humanidade – porque é disso que também se trata – em nome da hipocrisia diplomática dominante, ou se cria uma exigência de denúncia desses crimes, apesar do desconforto e dos atritos que isso provoca. A Amazónia tornou-se agora o símbolo maior do combate contra a criminalidade ambiental onde encontramos como cúmplices mais notórios Bolsonaro e Trump.
Mas o caso da Amazónia cruza-se com outros sinais de crise civilizacional que atravessam o mundo de forma cada vez mais insistente, provocando coincidências perturbadoras. Duas das mais emblemáticas crises europeias – o “Brexit”, num beco sem saída, e a queda recente do Governo italiano – colocaram em foco duas outras personagens que parecem fazer parte do mesmo mundo surreal e “clownesco” de Bolsonaro e Trump: Boris Johnson e Matteo Salvini. Personagens essas que, como os seus modelos de origem, têm a particularidade de desfrutarem de uma popularidade (ainda) invejável. A tentação populista tende a alastrar num mundo em perda acelerada de referências.
Ao mesmo tempo, constatamos que aquilo que ainda há pouco nos parecia sólido e inquestionável acaba por abrir fissuras inesperadas: é o caso da persistente luta da população de Hong Kong pelos seus direitos civis face ao totalitarismo chinês, ou, embora a uma escala mais restrita, o novo surto da resistência da oposição russa contra o autoritarismo de Putin (o tal Putin que o Ocidente procura aliciar para uma nova aliança, sem que se perceba qual é a sua substância ou a sua efectiva finalidade). Que encenações serão ainda possíveis em Biarritz, neste mundo de pernas para o ar?