Os New Order protagonizaram o filme, os Capitão Fausto deram-lhe um twist inesperado
Ao segundo dia do festival Vodafone Paredes de Coura, os portugueses conseguiram segurar o público frente ao palco principal depois de um concerto arrebatador protagonizado pela mítica banda que sucedeu aos Joy Division. Outros figurantes do segundo dia: Khruangbin, Stella Donnelly, Car Seat Headrest e Alvvays.
Costuma ser fácil antecipar o desfecho de um filme no qual, entre vários intervenientes mais ou menos secundários, há um protagonista que colecciona os louros de uma carreira longa e de sucesso. E perante um elenco composto por uns desconhecidos Khruangbin, uma Stella Donnelly a dar os primeiros passos, uns Car Seat Headrest em momento de afirmação e uns Alvvays ainda a ganharem espaço, o mais lógico seria que todos os focos se virassem para o cabeça-de-cartaz que já ganhou todos os galardões que tinha a ganhar. Este filme chama-se Vodafone Paredes de Coura e a figura de proa a que nos referimos são os New Order; facilmente, imaginávamos, a banda que nasceu das cinzas dos Joy Division chegaria ao segundo dia desta 27.ª edição do festival, veria e venceria. E depois de se apagarem as luzes, no final da apropriadamente terminal Love will tear us apart, pouco mais sobraria da história para contar.
Entrar em cena depois de uma performance que ficou a milhas de tudo o que já tinha acontecido antes no mesmo plateau? Missão impossível, pensou-se. Esquecíamo-nos, porém, que nesta saga que começou há 27 anos numa vila do Alto Minho quase nunca há finais antecipados.
Já os britânicos liderados por Bernard Sumner tinham abandonado o palco principal depois de uma actuação arrebatadora, perto da 1h, e a mancha de público que ocupava o anfiteatro de Coura, em mais uma sessão esgotada, mantinha-se quase intacta. Responsáveis por um twist inesperado, os Capitão Fausto, que há um par de anos abriram o mesmo palco para uma plateia reduzida, trocaram as voltas a quem questionava a posição que lhes foi cedida no cartaz e tornaram impossível não concordar que esta foi uma aposta ganha pela organização. Prova disso foram as letras das músicas cantadas em coro pelos fãs, enquanto o vocalista/guitarrista Tomás Wallenstein ainda não tinha parado de tremer, estarrecido pela massa humana que tinha à sua frente – seguramente os Capitão Fausto nunca tinham tocado para tanta gente.
Sem beliscar a posição de destaque dos protagonistas, os Capitão Fausto serviram para lembrar que o Vodafone Paredes de Coura é um festival feito de várias gerações e que todos os anos renova o seu público. Parte desse público que os portugueses conseguiram puxar para o seu lado, ao qual se juntaram no final do concerto, em modo crowdsurfing, terá sido angariado por força do lançamento do último álbum, A Invenção do Dia Claro.
Mas antes tinha havido um acontecimento de outro tipo de magnitude. Sem surpresas, sem esforço, os New Order trataram de corresponder às expectativas dos que esperaram um dia inteiro para os ver – era só a segunda vez que tocavam em Portugal em quase 40 anos de carreira.
O Ouro de Reno, de Richard Wagner, foi o tapete vermelho para a entrada da banda que, vindos dos Joy Division, Bernard Sumner, Stephen Morris e Peter Hook (hoje já fora dos New Order) formaram em Manchester – durante o dia, foram mais as t-shirts de Joy Division que se viram passear no recinto do que as t-shirts de New Order. Não demoraram mais do que dois temas, Singularity e Restless, até chegar à banda que tinha como ícone Ian Curtis, recordado em imagem de fundo nas quatro incursões da noite pelo legado do passado pré-New Order.
Era inevitável passarem por lá, embora não precisassem de o fazer, pois têm reportório quanto baste – de fora do alinhamento ficaram álbuns como Technique (1989), Republic (1993) e Get Ready (2001). A primeira incursão ao passado fez-se com She's lost control e Transmission; a segunda, ainda que sem adições desnecessárias, conservando a estética do original a nível instrumental, ressentiu-se da falta do insubstituível Ian Curtis na voz.
Entre a batida repetitiva de Subculture, o ambiente pós-apocalíptico electrónico de Bizarre Love triangle, a explosiva Waiting for the sirens call, com melodia de guitarra viciante, e a orelhuda True faith, chegaram a Blue monday, ponto de encontro para as várias gerações que se juntaram frente ao palco.
Antes de saírem de cena foram a Temptation, single de 1982 com base disco que nos remete para o som que bandas como Arcade Fire estão a fazer hoje, sem beliscar o crédito dos pioneiros, nem comprometer os segundos. O encore serviu para voltar a Joy Division. Não saíram sem tocar Atmosphere e Love will tear us apart, com o refrão da última a ser entoado pelo público já muito depois de o tema ter terminado.
Car Seat Headrest, uma máquina de composição
Antes dos New Order, o palco tinha sido dos Car Seat Headrest, que já lá tinham estado num fim de tarde de 2017, depois de no ano anterior terem passado pelo Nos Primavera Sound. De regresso, agora num horário mais nobre, trouxeram mais um álbum, Twin Fantasy (Face to Face), de 2018, de uma bagagem onde estão guardados cerca de uma dezena. A banda, que começou como uma aventura a solo do multi-instrumentista Will Toledo (que, na verdade, continua a ser o cérebro por trás do grupo), é uma máquina de fazer álbuns. Ainda o músico devia ter alguns dentes de leite e já tinha editado uma mão cheia de trabalhos lançados de forma independente, antes de assinar pela Matador.
Na primeira passagem por Coura, a aparência imberbe de Toledo poderá ter enganado quem não o conhecia, mas o próprio cedo desfez qualquer dúvida ao revelar-se um frontman mais do que talhado para domesticar uma plateia. Dois anos depois, continua a conservar o ar nerd, o que no rock’n’roll pode ser uma vantagem, e a capacidade de guardar numa mão o seu público. Num registo mais lo-fi, passando por um punk algo adolescente, algumas das composições têm no código genético a herança do som feito na cidade onde a banda montou base – Seattle. Do alinhamento ouviram-se as inevitáveis Fill in the blank ou e …It doesn't have to be like this.
Já os canadianos Alvvays chegaram esta quinta-feira para a sua primeira aparição em Paredes de Coura. Aterrados no palco grande, mostraram que são uma banda de refrães memoráveis, entregados com delicadeza pela voz de Molly Rankin, que lança da guitarra malhas pejadas de nostalgia, sugestão para a banda sonora de um sonho primaveril – será a descrição mais ajustada para o mais recente (e segundo) álbum dos Alvvays, Antisocialites, editado em 2017. Fazem uma dream pop com um pé no shoegaze, muitas vezes a levarem-nos para o déjà-vu, mas sem roçarem a irrelevância. Pelo contrário, são uma lufada de ar fresco num género de difícil reciclagem; mais do que um regresso ao passado, são uma alavanca de oportunidades para o universo em que se movem, sempre com os pés firmes, sempre longe de terreno pantanoso. No festival, tocaram num horário lusco-fusco que lhes assenta bem. Faltou entrarem noite dentro durante mais tempo para poderem aproveitar o crepúsculo a seu favor em temas mais carregados de tons de cinza.
Pouco tempo antes, o palco mais pequeno preparava uma surpresa: Stella Donnelly, com um ar frágil mas ao mesmo tempo reguila, sobe ao palco sozinha e é assim que fica nos primeiros dez minutos do concerto. Vai a Beware of the dogs, música que dá nome ao único álbum que editou, ainda este ano, e no final do tema solta os cães, deixando de lado a voz delicada para dar espaço à raiva. “Só fico chateada durante estes cinco minutos”, diz, antes de sair para Mechanical bull, último tema antes de chamar o resto da banda.
A artista que entrou na música a tocar versões de Green Day para mais tarde estudar jazz chegou a Paredes de Coura para substituir Julien Baker, e para surpreender os seus muitos fãs que sabiam as letras de cor. Com a banda, revela o sentido de humor que lhe dá graça e o indie rock gracioso que trouxe da Austrália, país de onde também vieram os Parcels e Julia Jacklin, que na véspera tinham tocado no palco principal.
Do psicadélico tailandês à electrónica magrebina
Num registo mais introspectivo, os Khruangbin proporcionaram a quem se sentou no relvado mais um final de tarde típico de Paredes de Coura. Trouxeram de Houston, Texas, o chill out perfeito para quem acabava de chegar ao recinto. O primeiro dos seus três álbuns, The Universe Smiles Upon You (2015), vai buscar inspiração ao psicadélico tailandês da década de 1960, e foi por aí que guiaram o alinhamento assente em linhas de guitarra que viajam sem destino e repartem com um baixo hipnotizante a liderança das composições. Da faceta mais psicadélica partem para outras paisagens sonoras onde vive o dub, frequentemente visitado por um funk tímido. A baixista, Laura Lee, ainda há pouco menos de dez anos não sabia tocar uma nota. Essa fragilidade, que no álbum de estreia se detecta com mais evidência, é ultrapassada ao vivo graças à experiência que foi adquirindo: à parte as suas investidas fugazes em ambientes protagonizados pela voz, que flutua pelo palco, Laura Lee maneja agora o baixo com dedos de veludo, mas com mais convicção.
Nos antípodas da sonoridade mais contemplativa dos norte-americanos, no after-hours, já bem mais tarde, os Acid Arab, duo parisiense formado pelo luso-descendente Hervé Carvalho e por Guido Minisky, aguçaram a curiosidade dos que foram atraídos para a sua electrónica desafiante assente em sonoridades de inspiração magrebina. Assim terminou o segundo dia do festival por onde até sábado ainda passarão Father John Misty, Spiritualized, Patti Smith ou Suede.