Predação de ninhos de aves no Árctico não merece a “etiqueta” das alterações climáticas
Equipa internacional de 60 cientistas contesta, na Science, artigo publicado em 2018 na mesma revista científica que defendia que as alterações climáticas explicavam o aumento de predação de ninhos a elevadas altitudes, sobretudo no Árctico.
Afinal, o aumento de predação de ninhos de aves limícolas a elevadas altitudes não estará relacionado com as alterações climáticas. Aliás, de acordo com uma verificação cuidadosa dos dados registados ao longo do tempo, nem sequer se poderá afirmar que houve um aumento significativo de predação dos ninhos. Uma equipa internacional de 60 cientistas, que inclui o português José Alves, publicou um artigo na revista Science que desmonta a história contada num trabalho publicado na mesma revista no ano passado. Afinal, a “apelativa etiqueta” das alterações climáticas não deve ser usada neste assunto.
Nem houve um aumento de predação de ninhos a elevadas altitudes nem este fenómeno (se tivesse ocorrido) poderia ter sido relacionado com as alterações climáticas. Pelo menos, isso é que é possível concluir dos registos que existem. O investigador José Alves, do Centro de Estudos do Ambiente e Mar e do Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro, conta ao PÚBLICO que o artigo que apresentava a versão de que as alterações climáticas estavam a promover aumento da predação de ninhos de aves limícolas, especialmente no Árctico, recebeu muita atenção quando foi publicado, no ano passado. As conclusões surpreenderam sobretudo quem acompanha de perto a vida destas aves.
“Um dos motivos pelos quais as aves limícolas, que detêm o recorde de distância em voos directos entre os locais de invernada e reprodução, percorrem longas distâncias até ao Árctico cada ano para se reproduzirem deve-se, entre outros factores, aos reduzidos níveis de predação neste bioma.” Assim, mais do que as associações de conservação da natureza que se apressaram a valorizar estes resultados, o artigo de 2018 apanhou de surpresa os cientistas que monitorizam há décadas populações de aves limícolas por todo o planeta, o que lhes permite obter séries temporais de registos únicas. E o problema é que os resultados publicados na revista Science no ano passado não estavam alinhados com registos antigos ou recentes, especificamente no Árctico. Ou seja, a bota não batia com a perdigota.
“Estes cientistas juntaram-se para reanalisar os dados e verificar os padrões indicados, sendo que contestam a análise estatística e também as assunções feitas para dados recolhidos a partir de publicações antigas e onde nem toda a informação necessária estava disponível”, refere um comunicado sobre o estudo agora publicado.
José Alves, especifica: “Interpretações e conclusões com a amplitude daquelas apresentadas no artigo original devem ser fundamentadas em evidências muito sólidas e, entre outras coisas, os autores fazem assunções sobre os dados históricos (recolhidos segundo protocolos distintos dos actuais) que são muito criticáveis.” Os cientistas perceberam que quando eram tidos em conta todos os dados registados – e não apenas os que serviam para justificar as conclusões – “os efeitos desaparecem”.
O artigo agora publicado afasta a hipótese de uma relação entre as alterações climáticas e um fenómeno (que também não se confirmou) de aumento de predação dos ninhos a elevadas altitudes, mas isso não quer dizer que não exista um impacto das mudanças no clima nos ecossistemas. “Apesar das alterações climáticas promoverem mudanças nos ecossistemas a nível global, de acordo com estes cientistas não existe uma relação entre a latitude e o aumento da predação de ninhos de aves limícolas em anos recentes, reforçando ainda que nos últimos 50 anos não existiram grandes oscilações nas taxas de predação no Árctico”, refere o comunicado.
Conscientes que “a crise do clima está na ordem do dia”, os investigadores alertam para o risco de “simplificar processos de análise de fenómenos ecológicos complexos, como a predação, utilizando a ‘etiqueta apelativa’ das alterações climáticas”. As alterações climáticas terão muitas culpas no cartório, mas não esta. O problema é que quando usamos esta explicação inadequadamente corremos o risco de ignorar as verdadeiras causas de um problema, sublinham os cientistas. “Um dos grandes impactos que assola estas aves migradoras é a contínua, incessante e cada vez mais frequente, destruição dos seus habitats”, avisa José Alves. Os locais costeiros que usam durante uma grande parte do ano “são também muito apetecidos para outras funções, seja para actividades recreativas, por exemplo kite surf, ou para desenvolvimento de infra-estruturas, sejam estas comerciais como zonas portuárias (de grande acessibilidade) ou de exploração de outros recursos, por exemplo produção de peixe em viveiros, ou de bivalves (veja-se o estuário do Tejo), ou até para habitação”.
Mas, então, as alterações climáticas não estarão de facto a ter nenhum impacto nestas aves? “Temos provas de outros trabalhos que para as aves que se reproduzem a altas latitudes, nomeadamente no Árctico e subárctico, as alterações climáticas têm realmente vários impactos”, reconhece José Alves citando alguns exemplos. As mudanças do clima têm feito, por exemplo, com que os picos de abundância de alimentos para estas aves ocorram mais cedo porque as temperaturas mais altas também estão a surgir mais cedo. “Isto significa que as aves ou migram antes para poderem colocar os ovos a tempo de as crias nascerem durante os picos de abundância de alimento, ou para aquelas que não conseguem ajustar as suas migrações e/ou datas de postura, a produtividade será menor, isto é, irão produzir menos crias”, explica. Em contrapartida, acrescenta o cientista português, também há espécies que com a chegada precoce da Primavera a locais normalmente mais frios estão a mudar alguns hábitos e têm ocupado novos territórios durante a reprodução.
José Alves tem (há mais de uma década) o estranho hábito de passar o Verão na Islândia. Tudo por causa estas aves migradoras que se deslocam para o Árctico e subárctico na época de reprodução. Um dos mais recentes artigos que assinou, publicado na revista Nature, era sobre os dedicados turnos parentais. Entre outras conclusões, o trabalho registou o recorde absoluto do maçarico-de-bico-comprido (Limnodromus scolopaceus), que passou 50 horas seguidas a proteger o ninho, sentado em cima dos ovos, sem comer ou beber. Não é difícil adivinhar onde se encontra o dedicado cientista agora: “Neste momento estou na Islândia, precisamente a estudar estas aves durante a época de reprodução, seguindo os ninhos, as crias e a sua preparação para a migração que se avizinha.”