Uma “biblioteca” de invertebrados marinhos para estudar o que (ainda) não vem nos livros

O Ecomare, laboratório da Universidade de Aveiro inaugurado em 2017, guarda uma colecção única em Portugal de corais, algas, anémonas e lesmas-do-mar mantida por investigadores interessados “numa aquacultura menos convencional”.

Corais duros
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Os investigadores cortam o "chapéu" destes corais e deixam o pé, que regenera, perpetuando assim as colónias Adriano Miranda
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O "cartão-de-visita" da biblioteca viva de invertebrados marinhos é um aquário onde vivem juntas espécies de várias proveniências Adriano Miranda
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Produção da macroalga Codium tomentosum Adriano Miranda

Há uma “biblioteca” num centro de investigação em Aveiro que não se conserva em prateleiras — antes, vive dentro de aquários. Ricardo Calado, investigador principal numa das unidades do Ecomare, laboratório da Universidade de Aveiro, onde também é professor, abre-nos a porta a um mundo onde (quase) todos gostaríamos de mergulhar, mas que, em simultâneo, ameaçamos. Tanto com decisões aparentemente tão insignificantes como o tipo de protector solar químico que escolhemos como grandes actividades industriais que causam o aumento da temperatura e acidificação da água do mar. Ali dentro, porém, o ambiente é controlado. “Esta é a nossa biblioteca de invertebrados marinhos”, apresenta o responsável pelo centro. “Há aqui uma série de potencial a ser explorado.”

Nesta sala, estudantes, investigadores (e, às vezes, visitantes curiosos) criam invertebrados como corais, anémonas ou amêijoas gigantes para aquários e investigação científica. Uma “aquacultura sustentável menos convencional”, pelo menos quando comparado com a que tem lugar num tanque muito maior onde nadam mil salmões destinados a consumo humano, na parte exterior do edifício junto à ria de Aveiro, na Gafanha da Nazaré. Ricardo Calado também nos levou até lá, mas o que nos faz parar é um protótipo de um recife de coral que poderíamos ver nas águas do Indo-Pacífico, caso os investigadores não tivessem misturado no mesmo aquário “espécies de várias proveniências”. A maior parte delas já produzidas em cativeiro e, no caso das amêijoas gigantes ou dos corais duros, protegidas pela Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção. “As pessoas às vezes não sabem, mas ter um esqueleto de coral em casa, sem estar devidamente legalizado, do ponto de vista legal é tão grave como ter um dente de elefante ou um pente feito de carapaça de tartaruga”, alerta.

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O "cartão-de-visita" da biblioteca viva de invertebrados marinhos é um aquário onde vivem juntas espécies de várias proveniências. Adriano Miranda

O primeiro aquário serve de “cartão-de-visita” — e de prova que é possível manter uma “floresta marinha” em perfeitas condições, “com algumas soluções da biologia”, como a rocha e a areia utilizadas (e menos dependência da tecnologia). Os outros podem ser menos visualmente apelativos, com menos diversidade de cores e peixes tropicais, mas é dentro deles que saem muitos projectos. “Nós o que temos são colónias-mãe, sejam animais da nossa costa ou animais tropicais”, estes últimos em maioria “porque crescem mais rapidamente, são mais fáceis de manter e de propagar”. O objectivo é manterem e garantirem o bem-estar dessas colónias, para “delas retirarem clones”, ou seja, fragmentos. “É quase como se fosse jardinagem. Chama-se até reef gardening”, ri-se Ricardo Calado, que mais à frente nos mostraria uma frutífera “horta de anémonas”, criada apenas a partir um exemplar.

É nesses fragmentos, sem variabilidade genética — já que resultam de um método “natural de propagação assexuada” — que os investigadores fazem depois diferentes experiências. “Vimos por exemplo que, em função da luz, estes corais duros conseguem alterar a matriz do esqueleto de coral. Conseguimos manipular a porosidade, a orientação dos cristais de carbonato de cálcio e isto é muito importante para estudos da biomedicina em que o esqueleto do coral pode ser usado quando é preciso fazer um excerto de osso, em vez de usarmos uma prótese de metal.”

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Produção da macroalga Codium tomentosum Adriano Miranda

Estão também a fazer alguns estudos de “evolução assistida” em que tentam fazer “uma bioengenharia do coral” para o tornar mais resistente à subida da temperatura da água. “Porque não é propriamente o coral que fica chateado com o excesso do calor, são as algas que lá estão dentro. Mas essas algas não são todas iguais, há linhagens diferentes e há umas que são mais termotolerantes do que outras. Para não deixar os corais desaparecer por completo, porque isso tem consequências em cascata, poderá fazer sentido tentar repovoar com corais mais termotolerantes.” Outras experiências são bem mais práticas: perceber, por exemplo, que tipo de supercola usar para prender corais moles, “que libertam muito muco”.

Lesmas-do-mar que sequestram cloroplastos. Ou seja, “cleptoplastos"

Num outro laboratório, o projecto HULK, liderado pela investigadora Sónia Cruz, tenta “decifrar o enigma” das “lesmas-do-mar fotossintéticas”, que também estão presentes na costa portuguesa. Estes animais, que vistos à lupa parecem ter sido salpicados com purpurinas, furam a alga de que se alimentam, sugam-lhe todo o conteúdo celular, digerem-no mas retêm, funcional, um organelo: o cloroplasto, responsável pela fotossíntese. “Mas e agora para quê que elas o utilizam? Qual é o benefício?” Intervém Ricardo Calado: “Isto ainda é mais esquisito porque se nós pusermos uma luz muito forte que não faria mal ao animal, mas seria prejudicial ao cloroplasto, ela foge da luz e arranja forma de se proteger. Como se fosse um organelo a mandar num animal de várias células.” É o único ser vivo conhecido no reino animal que faz este “sequestro”.

Uma das hipóteses, que começaram esta semana a testar com casais de lesmas guardados em vários frasquinhos, é que os “produtos da fotossíntese estejam a ser usados no investimento parental”, expõe Sónia Cruz. “A partir daí, se realmente encontrarmos carbono oriundo da fotossíntese nos ovos, vamos então fazer diferentes tratamentos, com luz e com pouca luz, para ver se com mais fotossíntese temos uma qualidade maior de ovos.”

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A visita termina novamente em frente à única colecção viva em Portugal com “a missão de manter invertebrados marinhos e produzir biomassa a pedido”. “É muito interessante olharmos para esta ecologia marinha aplicada, perceber os processos no meio natural, replicá-los na aquacultura sustentável e depois melhorá-los através da biotecnologia. E de facto as soluções que existem do ponto de vista da biotecnologia são praticamente infindáveis e nós temos uma grande sorte que é o facto de termos aqui a ria de Aveiro, que é um laboratório vivo, como lhe chamamos, em que conseguimos passar da escala da aquacultura, ‘do alguidar’, para uma escala mais real”, explica Calado.

“Há oportunidades de negócio muito interessantes também. E isto foi algo que também me fez vir para esta área”, conta. No projecto de doutoramento no Laboratório Marítimo da Guia, em Cascais, o investigador iria trabalhar “com santola e camarões vermelhos muito bonitos, da nossa costa”, recorda. “Ao fim das primeiras semanas, percebi que ia deixar a santola e desenvolver os primeiros protocolos de cultivo da espécie de camarões [do Mediterrâneo], que depois deu origem a um negócio, a primeira empresa em Portugal dedicada exclusivamente à produção de espécies marinhas ornamentais.” A empresa formada em 2003 continua, mas sem Ricardo Calado, que prefere antes outro “bichinho”: “o da investigação”. “Gosto de fazer as coisas enquanto não sei fazê-las. E numa empresa o que dá dinheiro é a produção. No início da minha tese coloquei uma daquelas frases filosóficas muito usadas para começar teses de doutoramento [e, por vezes, para terminar reportagens]: ‘Se nós soubéssemos o que estávamos a fazer, não se chamava investigação’.”

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