Em Porto Covo, o afrofunk rugido dos Vaudou Game é rei

O Festival Músicas do Mundo despediu-se de Porto Covo – segue agora para Sines – com um concerto em que o afrofunk dos Vaudou Game enfeitiçou a multidão. Dobet Gnahoré e Gaiteiros de Lisboa também deram provas de vida.

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Os Vaudou Game deram um tremendo concerto em Porto Covo Mário Pires/FMM

Isto não é como nos filmes de Hollywood, avisa Peter Solo. Nos filmes de Hollywood, a palavra vaudou (ou voodoo ou vudu) traz consigo sugestões de bizarria, oculto, magia negra ou cerimónias com bonecos de pano cravados de alfinetes. Fora dessas adulterações do cinema e da cultura popular, o vaudou é outra coisa, é uma cultura (e religião) nascida no Daomé do século XVI, nos territórios que hoje conhecemos como Togo e o Benim, embarcada com os escravos para o Haiti, para Cuba e para o Brasil, focada, entre outros princípios estruturantes, na relação com a natureza. É isso que informa Peter Solo no palco do Festival Músicas do Mundo (FMM), na última de três noites em Porto Covo – no domingo muda-se para Sines. E ali, à frente do colectivo Vaudou Game, o vaudou é um afrofunk irresistível. É, afinal, uma música com que Solo enfeitiça a multidão e é enfeitiçado de volta. No final do concerto, obrigados a um duplo encore, os músicos olham o público com sorrisos de uma felicidade quase infantil que não escondem o quanto a noite foi tão especial para eles quanto foi para nós.

Peter Solo nasceu e cresceu no Togo, entre o povo guin de Aneho-Glidji, com o vaudou entranhado até aos ossos, tendo emigrado já adulto para Londres e seguido daí para Lyon. Apesar deste trajecto, os dois pontos unidos na música dos Vaudou Game são mais fáceis de identificar: o funk-soul de James Brown e a sua mais melodiosa e temperada versão africana (audíveis nos maravilhosos coros dos clássicos africanos dos anos 70, que podiam estar na Rail Band ou na Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou), transportados ambos por um combustor rítmico irresistível. Não há sons nem notas a mais nesta música: uma secção rítmica que está sempre com o pé no pedal, um baixo e uma bateria que parecem ocupar o espaço todo, eles sim fabricantes de uma feitiçaria tal que dispõem dos corpos que têm à sua frente para os agitar em danças constantes; um uso dos sopros que incendeia ainda mais cada tema; e a guitarra cheia de ginga de um Peter Solo que ruge como James Brown e canta letras e melodias que se tornam mantras. Quando, a meio do concerto, vemos um sexagenário atravessar a multidão num prolongado crowd surfing, sabemos que há qualquer coisa de euforia colectiva a tomar conta de Porto Covo.

Anniversaire, Tata fatiguée, La vie c’est bon, Je suis pas contente ou Grasse mat vão acumulando uma relação de amor – começada em 2015, na primeira passagem do grupo pelo FMM – que termina com o público a reclamar outro e outro regresso dos músicos a palco e a prometer transformar Grasse mat numa canção infinita. Quem dera a Hollywood saber inventar finais felizes como este.

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Dobet Gnahoré faz coincidir o tempo todo uma encenação de tradição num espaço musical de modernidade, Mários Pires/FMM

De rituais a bacanais satânicos

Antes dos Vaudou Game, assistiríamos a uma curiosa transmutação para o Líbano do código dos blues pelos Wanton Bishops e a um outro fascinante ritual, encabeçado pela cantora Dobet Gnahoré, da Costa do Marfim. Também ela seguindo as pistas de um pulsar muito funk e, ao longo do concerto, entregue a uma energia cada vez mais rock, Gnahoré vai espalhando uma voz encantatória sobre os temas, como se o seu tom doce, celestial, quase operático, não precisasse de se sujar na operação rítmica que põe os temas em marcha. Rendida a um transe de palco, em que salta, grita, dança, empregando ou não uma máscara, Dobet faz coincidir o tempo todo uma encenação de tradição num espaço musical de modernidade, navegando por sonoridades pop, funk ou rock mostrando como estas podem abastecer a sua música (de alicerces africanos) mas são incapazes de a aprisionar.

O início da noite de sábado ficou por conta de uns Gaiteiros de Lisboa, vindos do seu álbum menos inspirado, Bestiário. O início da actuação, aliás, faria temer pelas sequelas deixadas pelas saídas de José Manuel David e Rui Vaz, claramente empobrecendo o jogo vocal em que sempre abasteceu este pingue-pongue entre vozes, percussões e gaitas galegas que trouxe uma postura punk à música tradicional portuguesa e levou à criação de um reportório e uma discografia que são uma bênção. Uma bênção obrada por fazedores, entre outras patifarias, de “momentos litúrgicos ligeiramente obscenos”, como lhes chamou o líder Carlos Guerreiro em Porto Covo, antes de avançarem por O Judas teve sarampo e o “bacanal satânicos” de Roncos do diabo. Se começou tremido, a partir de Nós daqui e vós dali o fosso entre os Gaiteiros passados e os presentes foi-se encurtando e Brites de Almeida (a biografia cantada de uma temível mulher entregue à panificação – lembra alguém? – cujos feitos não a levaram para o Panteão), Besta quadrada e Roncos do diabo deixam de surgir como irmãs menos iluminadas do que as canções mais velhas com que partilham o palco. Graças a um concerto muito físico e festivo, a que não faltaram Trângulo-mângulo, Lenga-lenga e Subir subir, ficou provado que os Gaiteiros não acabaram nem estão acabados.

Óvni sul-coreano

Num Largo Marquês de Pombal cada vez mais lotado e em que a circulação chega a tornar-se desesperante, sábado seria uma noite bem mais quente (musicalmente) do que a véspera. Apesar de as lições sobre coolness nas ruas de Lagoa (capital da Nigéria) e de uma enérgica demonstração do seu blue-funk, assente numa guitarra semi-acústica latejante atacada como se fosse um baixo dos Funk Brothers, Keziah Jones dificilmente permanecerá na memória de quem o viu em Porto Covo. Não por culpa sua, mas porque as suas canções que são só músculo e zero de gordura cumprem-se no momento mas deixam um lastro demasiado reduzido.

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Gaiteiros de Lisboa Mários Pires/FMM

Algo que é também, por enquanto, um problema para a brasileira Luedji Luna. A baiana carrega os seus temas de ideias como as mulheres enquanto árvores que florescem e frutificam, o seu corpo como o território a que pertence (menos do que a um lugar preciso) ou uma narração da revolução haitiana ligada não à dor e à escravatura mas a um movimento de levante. No entanto, ao seu tom cândido e belo (a lembrar Adriana Calcanhotto) vão faltando momentos de rasgo que levem a pensar nela como algo mais do que uma voz bonita e artífice de palavras justas.

Talvez por isso sexta-feira será sobretudo lembrada pelo óvni que é o colectivo sul-coreano The Tune. Cinco mulheres em palco que aplicam uma toada jazzística (mas um jazz folião, atrevido) a uma instrumentação tradicional (com excepção do teclado), agitada por as constantes guinadas para uma folk excêntrica, a roçar o vaudeville. Sem abanarem a estrutura do mundo, deliciaram e intrigaram com uma música lúdica, familiar e estranha ao mesmo tempo. Mas, muitas vezes, não é sequer preciso apontar a qualquer revolução: basta pôr o sangue, o suor e toda uma vida de choques, frustrações e percalços ao serviço de canções que celebram a vida e agradecem à natureza cada novo dia. Sim, voltámos ao início, e ao tremendo concerto em Porto Covo assinado pelos Vaudou Game. Saibamos continuar a escutá-lo.

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