Sona Jobarteh faz ouvir o secular som da kora na costa alentejana
O Festival Músicas do Mundo arranca esta quinta-feira e decorre até 27 de Julho. Até sábado, o palco é em Porto Covo e tem na instrumentista da Gâmbia um dos principais atractivos.
Sona Jobarteh passou anos a preparar o momento em que, finalmente, foi ter com o seu pai, Sanjally Jobarteh, pedindo que este se tornasse o seu professor de kora – espécie de harpa de 21 cordas, tocada pelos griots. Nascida na Gâmbia, no seio de uma das principais famílias griots que asseguram a tradição da kora e a manutenção das histórias do seu povo há mais de 700 anos, Sona tinha estudado violoncelo clássico e piano em Inglaterra, e seguido um percurso que, só mais tarde, havia de se revelar um círculo perfeito e devolvê-la ao primeiro instrumento que tocou, ainda em criança.
A certeza de que a kora era o único instrumento com o qual se sentia completa foi-se tornando mais evidente ao longo dos anos. Mas essa constatação não a levou de imediato ao seu pai, um dos grandes mestres griots da kora. Só depois de anos a ter aulas com um irmão mais velho se sentiu preparada para abordar o pai, sabendo que a kora é um instrumento habitualmente vedado às mulheres. Sanjally, desvalorizando o facto de o pedido vir de uma filha ou de um filho, quis apenas tratar de transmitir todo o seu conhecimento para alguém que queria dar-lhe continuidade, tal como previsto por esta monumental corrente de transmissão de saber existente entre os griots. E deu-lhe apenas um conselho que a música guarda até hoje: “Certifica-te de que tocas realmente bem, não o faças de maneira a que as pessoas possam comentar que és mulher.”
Sona Jobarteh fez dessas palavras lei, acabando por tornar-se a primeira instrumentista profissional de kora. Já muito se passou desde que actuou pela primeira vez em público, numa cerimónia organizada pela família, ocasião para a qual se preparou, uma vez mais, durante anos, garantindo que se apresentava a salvo de quaisquer críticas que a visassem por razões extra-musicais. “Precisei de criar um espaço para poder estudar e permanecer focada no que tinha de fazer”, conta ao PÚBLICO dias antes de actuar em Porto Covo, enquanto um dos mais destacados nomes do arranque do 21.º Festival Músicas do Mundo (FMM). “Sabia que atrairia muita atenção e isso era algo de que não gostava mesmo nada. Por isso, estudar tornou-se algo muito privado para mim. Tive de esperar muito tempo até sentir que tinha chegado o momento em que era boa o suficiente para tocar em público, para começar e não recuar. Isso aconteceu talvez dez anos depois de ter iniciado a minha aprendizagem.”
Dado esse primeiro passo, Sona Jobarteh começou a confrontar-se com uma constante descrição de “primeira tocadora de kora profissional”. E a indignar-se com esse zoom sobre o seu género e não sobre a sua música. Até porque se a aprendizagem da kora foi um caminho árduo, o grande desafio havia de chegar em seguida ao tentar acrescentar a sua própria ‘voz’ a uma tradição com sete séculos de reportório que estão sempre presentes na sua música. Foi de novo o pai a dizer-lhe que tinha alcançado a sua autonomia, ponto a partir do qual Sona passou a perguntar-se: “Qual é o meu contributo para esta música, qual é o meu papel nesta tradição que é essencial para as nossas vidas e para a nossa sociedade?”
A resposta, sabendo que não queria ser uma mera conservadora das canções tradicionais, foi a de usar a música como “ferramenta cultural a partir da qual levantar questões e criticar coisas que nem sequer podemos falar em voz alta nas nossas comunidades por causa dos costumes locais – mas que se pode fazer dentro da música, exigindo uma responsabilização daqueles que fazem as leis, mas também de nós próprios”.
Antes de rumar a Sines, o FMM instala-se em Porto Covo, de quinta a sábado, com concertos de Sona Jobarteh, Barmer Boys (Índia), The Tune (Coreia do Sul), Keziah Jones (Nigéria), Gaiteiros de Lisboa (Portugal), Dobet Ghanoré (Costa do Marfim) ou Vaudou Game (Togo).