Uma viagem genética pela origem das vacas domésticas
Uma grande seca na Idade do Bronze causou uma mistura genética entre duas subespécies de bovinos domesticados, revela-se num artigo publicado na Science que tem a geneticista portuguesa Marta Pereira Verdugo como uma das primeiras autoras.
Enquanto estava a fazer o seu doutoramento no Trinity College de Dublin (Irlanda), Marta Pereira Verdugo fez uma verdadeira viagem genética pela origem da domesticação do gado bovino (Bos taurus). Ao sequenciar 67 genomas antigos de vacas selvagens e domésticas, a geneticista molecular viu – praticamente em directo – a origem da domesticação de duas subespécies de gado bovino há dez mil anos. Observou ainda que há quatro mil anos, na Idade do Bronze, houve uma mistura genética entre essas subespécies devido a uma grande seca. Agora, este trabalho é um dos artigos da última edição da revista científica Science.
Em 2013, Marta Pereira Verdugo iniciava o seu doutoramento no laboratório de Daniel Bradley no Trinity College de Dublin. O seu projecto fazia parte de uma bolsa do Conselho Europeu de Investigação, em que se sequenciava e analisava o genoma de ovelhas, cabras ou vacas e se estudava a sua domesticação. “Quando comecei o meu doutoramento, sabia muito pouco sobre o processo de domesticação e fui ficando fascinada”, conta agora a geneticista molecular.
O artigo publicado na Science é uma parte da sua tese de doutoramento em que se dedicou à domesticação do gado bovino. Ao todo, sequenciou 67 genomas antigos de vacas domésticas e selvagens com idades entre os 9000 e os 900 anos. Estas vacas eram maioritariamente do Próximo Oriente e outras pertenciam à Ásia Central e à Península Balcânica.
Para obter amostras de boa qualidade, a geneticista extraiu ADN da parte petrosa – que é bastante densa e preserva bem o ADN – do osso temporal dos fósseis da vaca, que descreve como algo “revolucionário” no seu trabalho. “Nas vacas o osso temporal é ligeiramente maior e mais saliente em comparação com o dos humanos e de outros animais domésticos, de forma que cortar o osso e extrair ADN é extremamente fácil”, refere. “Isto permitiu-nos olhar directamente para o passado e observar as mudanças genómicas a ocorrer no tempo e no espaço sem termos de ficar dependentes da variabilidade genética do gado moderno.”
Viajemos então pela origem da domesticação do gado bovino. Sabe-se que o gado bovino foi domesticado há cerca de 10.500 anos no Crescente Fértil (Turquia, Síria e Iraque) a partir do auroque (Bos primigenius), que hoje em dia já está extinto. “Os auroques eram animais enormes: deve ter sido um processo bastante difícil domesticar um animal tão grande. É um grande feito para o humano”, frisa Marta Pereira Verdugo.
Agora, durante a análise aos 67 genomas, confirmou-se (embora existam outras hipóteses) que as duas subespécies de gado bovino – o gado taurino e o gado zebuíno (ou zebu) – têm dois centros de domesticação diferentes. Enquanto o gado taurino terá sido domesticado no Crescente Fértil há dez mil anos, o gado zebuíno terá sido no vale do Indo (na Ásia Meridional) há 8000 anos.
“Aquilo que acabámos por observar foi um suporte para estes dois centros de domesticação”, assinala Marta Pereira Verdugo, que é uma das três principais autoras deste estudo. Sobre outros estudos científicos que referem que as vacas domésticas da Europa não tiveram apenas origem no Crescente Fértil, mas também no Nordeste de África, a geneticista refere: “Os nossos dados apoiam estes dois centros [para o gado taurino e zebuíno], mas na ciência há sempre espaço para debate e isso também depende da base de dados com que estamos a trabalhar.”
Partilha de dados
Mas a grande novidade deste estudo aconteceu há 4000 anos, na Idade do Bronze. “Vimos uma mudança clara nos genomas do gado taurino no Crescente Fértil”, refere. Os primeiros exemplares de gado taurino não tinham qualquer tipo de ancestralidade do gado zebuíno. Contudo, detectou-se um grande e rápido influxo do material genético do zebu do vale do Indo para o gado taurino do Crescente Fértil. Concluiu-se então que essas duas subespécies conviveram e se misturaram (a nível genético) no Crescente Fértil.
Motivos? Nessa altura, houve uma grande seca – que teve um grande impacto nas civilizações da Mesopotâmia ou do Egipto – e sabe-se que o zebu estava bem-adaptado a um clima árido e tropical. Desta forma, conseguia sobreviver melhor a uma seca do que o gado taurino.
“Colocamos a hipótese de isto ter sido mediado pelos humanos por se terem apercebido que o zebu se adaptava melhor [à seca] e, portanto, beneficiariam de [animais] híbridos destas duas subespécies”, explica a geneticista, justificando que a tese ganha força porque esta mistura tem um padrão muito complexo (que não se conseguiu delinear bem) e porque foi uma mudança drástica num período relativamente curto (começou há 4000 anos e estende-se até hoje).
“Este foi o começo da grande diáspora do zebu que continua ainda nos dias de hoje – os descendentes do antigo gado do vale do Indo estão em rebanhos das regiões dos trópicos hoje em dia [como o Brasil]”, realça Daniel Bradley num comunicado do Trinity College de Dublin.
Para Marta Pereira Verdugo, um dos grandes objectivos deste trabalho é tornar a base de dados do genoma de animais antigos pública, para que outros investigadores a possa estudar. “A base de dados [deste trabalho] vai estar disponível para qualquer pessoa fazer o download e explorar outras questões. Ainda há muito a ser explorado.”
Neste momento, a geneticista de 29 anos está a trabalhar na Oxford Nanopore Technologies, empresa britânica que produz tecnologia para sequenciação de ADN. Mas o fascínio pela domesticação dos animais ainda persiste. Agora, sempre que há algum projecto com animais na sua empresa está interessada. “O bichinho ficou lá”, brinca.