Costa sobre concelhos com tradição de touradas: “Isso deve ser ressalvado”
António Costa defende que não se pode ter “a ilusão” de que o país passou “do inferno para o paraíso”. E que, nesta fase que se avizinha, “o PS também tem de fazer pela vida”.
Possíveis acordos de governo, contas públicas, eventuais apoios a Marcelo, o “país do caos” e o “país cor-de-rosa”. Em duas horas de entrevista à Visão, o primeiro-ministro vai do “inferno” ao “paraíso”, fala de um e de outro, não esquece os actuais parceiros, nem os que o poderão vir a ser, como o PAN. É, aliás, a esse propósito que toca num tema particularmente polémico, o das touradas, para dizer que há concelhos em que “a tourada faz parte da sua identidade, e isso deve ser ressalvado”.
A pergunta era sobre a hipótese de a maioria depender do partido liderado por André Silva e de este colocar como condição a proibição de touradas em Portugal. O governante começou por responder que “ao longo desta legislatura” houve “um bom diálogo com o PAN”: “Com excepção do primeiro, em que se absteve, o deputado do PAN votou favoravelmente todos os orçamentos do Estado. E fê-lo com base em negociações que fomos mantendo, relativamente a propostas que o PAN apresentou. Quanto às touradas, o PS e PAN foram, aliás, derrotados, na Assembleia da República (AR), quando se votou a proposta que permitiria aos municípios decidir se autorizam ou não a realização de espectáculos tauromáquicos no respectivo concelho…”
Confrontado com o facto de tal já acontecer e de, por exemplo, Viana do Castelo não autorizar esses espectáculos, Costa lembrou que “há outros concelhos em que a tourada faz parte da sua identidade, e isso deve ser ressalvado”. “Há ainda outros em que o debate seria intenso e, até quem sabe, decidido em referendo local”, acrescentou.
Em Novembro, numa carta-aberta a Manuel Alegre, no PÚBLICO, o primeiro-ministro já tinha escrito que prefere “conceder a cada município a liberdade de permitir ou não a realização de touradas no seu território à sua pura e simples proibição legal”, considerando “extemporâneo um referendo sobre a matéria”. Costa afirmava que o chocava que o serviço público de televisão transmitisse touradas, mas que não lhe ocorria proibir essa transmissão. Dissipava, no entanto, quaisquer dúvidas sobre a sua posição pessoal, esclarecendo rejeitar “a tourada como manifestação pública de uma cultura de violência ou de desfrute do sofrimento animal”.
O melhor resultado
Mas esta foi apenas uma parte de uma conversa bem mais longa, no jardim de São Bento. Costa reafirmou estar a lutar pelo “melhor resultado possível”, garantindo que “nunca” imporá “condições para governar”. Mas o calendário dita outra audácia política: “Todos os dias ouvimos o BE e o PCP a dizerem que tudo o que aconteceu de bom foi graças a eles – e apesar do PS! (…). Quando o PS reage, lá estão os socialistas a serem injustos e ingratos e a quererem dramatizar e a ambicionar a maioria absoluta, para se libertarem dos seus parceiros… Ora, chegámos a uma fase do calendário político em que, inevitavelmente, cada um puxará a brasa à sua sardinha… E o PS também tem de fazer pela vida.”
O que aí se avizinha, com a campanha e as legislativas a caminho, esteve presente em várias das declarações de António Costa, como esta em que, a propósito da crise dos professores e da tensão política do passado recente, apontou baterias ao futuro próximo: “Nesse momento – que não devia ter acontecido – ficou clara a forma como a AR percebeu o erro que se preparava para cometer. Espero que quem se preparava para cometer esse erro não tenha, agora em campanha eleitoral, a tentação de o repetir, fazendo promessas da mesma natureza. O país saiu do procedimento por défice excessivo e eu espero que tenha sido a última vez que passámos por isto!”
No início, nem se conheciam
Em momentos posteriores, Costa desmentiu a “ideia de que só a direita gere bem as contas” e fez um balanço positivo do trabalho feito: “O melhor teste ao sucesso desta legislatura é o seguinte: muitos daqueles que, no seu início, consideravam irresponsável o que pretendíamos fazer – e que diziam que corríamos o risco de invocar o diabo – são os mesmos que, agora, nos acusam de não termos ido suficientemente longe…”
Uma futura solução de governo semelhante à “geringonça” depende, notou, “da vontade dos eleitores, em primeiro lugar, e da vontade política de cada partido”. Sobre entendimentos reforçou algumas ideias que já tinha defendido antes, como ter uma “regra de elementar bom senso” que passa por não mudar “as coisas” quando “correm bem”. Ou sobre eventuais idas dos parceiros para o Governo: “Por vezes, é preferível manter uma boa amizade a estragá-la com uma relação amorosa falhada…”
“Para já, nesta legislatura, saímos com uma confiança reforçada que nos permite pensar que é possível esse entendimento. Aliás, tenho dito que isso nem depende de haver ou não haver maioria absoluta…”, declarou ainda, garantindo que “a confiança entre os parceiros é superior àquela que existia há quatro anos”, quando se sentaram “pela primeira vez à mesa, e em que algumas pessoas nem se conheciam entre si”.
Apesar destas palavras, Costa não deixou de passar outras mensagens, dirigidas em cheio aos parceiros. Falava sobre legislação laboral, mas a afirmação serve que nem uma luva a outras matérias em que a esquerda não se tem entendido: “A pior atitude que se pode tomar, quando se quer alterar uma legislação, é impossibilitar qualquer mudança, só porque não é maximalista.”
Considerou que “o Presidente da República tem razão quando diz que precisamos de uma oposição forte”. Assinalou, porém, uma “diferença substancial”: “O Presidente da República pode acumular as suas funções com as de analista político. O primeiro-ministro não pode nem deve.”
“Largámos o inferno”
Mesmo assim, não deixou de criticar a oposição por ir mudando de narrativa. “Em 2015, acusavam-nos de relançar a economia com a receita gasta do investimento público. A crítica que nos fazem agora é a de não termos feito investimento público suficiente. Percebo que a oposição tenha sentido necessidade de reinventar o seu discurso, mas nós não tivemos de reinventar o nosso”, disse, reafirmando que o défice zero “é o objectivo para 2020” e que “o objectivo para este ano é o de 0,2%”.
Apesar do balanço positivo que faz da governação, Costa reconhece que há caminho a trilhar: “Não podemos ter a ilusão de que passámos do inferno para o paraíso. Felizmente já largámos o inferno e, ao contrário do que alguns temiam, o diabo não regressou. Mas temos de prosseguir no caminho solidamente.”
Por outras palavras: “Temos um grande caminho para continuar a trabalhar. O esforço de recuperação dos serviços ao longo da legislatura foi gigantesco, mas estamos ainda aquém do que é necessário. Não tenho a visão de que ao país do caos se contrapõe o país cor-de-rosa. O país não está num caos nem é um paraíso cor-de-rosa. Tem problemas, hoje menores do que há quatro anos.”
As dificuldades na Saúde ou as reivindicações de alguns sectores profissionais foram apenas outros de muitos temas abordados. E, apesar do calendário político, Costa não se coibiu de apontar o dedo: “Alguns sectores profissionais convenceram-se de que, por ser ano eleitoral, o Governo facilmente ficaria refém da contestação social, mas enganaram-se. O país não esquece o sofrimento pelo qual passou e pelo qual não quer voltar a passar.”
Defendeu que não foi “à custa da Saúde que os resultados do défice têm vindo a ser alcançados”, que “a reposição das 35 horas não foi um devaneio” e que “essa alteração de horário não diminuiu a produção do Serviço Nacional de Saúde”.
A necessidade de melhorar os salários da função pública também foi abordada: “O Estado tem de olhar para as condições remuneratórias dos seus quadros superiores de outra forma, no futuro. Neste ano, fizemos um grande esforço para garantir um aumento dos níveis salariais mais baixos; agora, nos quadros intermédios e superiores, o Estado vai ter de rever a sua política remuneratória, senão será incapaz de conseguir contratar e reter os quadros mais qualificados”.