As memórias, as verdadeiras e as outras, estão no Curtas
Duas sessões notáveis de Panorama Nacional abrem alas para uma competição nacional que arranca na noite de segunda-feira
A produção feita em Portugal ao longo dos últimos dezoito meses ensaia igualmente o diálogo entre o presente e o futuro que o Curtas Vila do Conde propõe na sua edição 2019. Dá vontade de perguntar o que veio primeiro, o ovo ou a galinha, mesmo sabendo que um festival responde muito mais àquilo que está a acontecer enquanto está a ser preparado; mas a verdade é que é também apanágio de uma programação reparar nisso, apontá-lo, sublinhá-lo.
Ainda é cedo pensar nisso em termos da competição portuguesa — a primeira de cinco sessões terá lugar na noite de segunda-feira às 21h (com repetição sempre no dia seguinte às 19h30) e, como é tradicional, uns quantos dos títulos ainda estão em trabalho de finalização. Mas já podemos, claramente, ver como isso vem ao de cima no Panorama Nacional, duas sessões que reúnem as curtas portuguesas que mais têm dado que falar nos últimos meses.
Ou que deviam ter dado – porque chega a ser quase escandaloso o perfil ainda relativamente discreto de O Mar Enrola na Areia, o magnífico ensaio sobre a verdade (e a mentira?) da memória de Catarina Mourão. Visto no Indielisboa deste ano, O Mar Enrola na Areia trabalha uma certa nostalgia inocente da memória de Verão à qual vai progressivamente dando contornos mais negros, com a realizadora a trabalhar magistralmente o tempo narrativo e a utilização de imagens de arquivo para criar e retirar camadas que são outras tantas possibilidades de histórias ou memórias. É um filme que mantém intacto o estado de graça da sua longa anterior, A Toca do Lobo, e que nos confirma apenas como está aqui uma das mais estimulantes exploradoras da imagem de arquivo entre nós.
Não anda nisso muito longe de Susana de Sousa Dias, que, depois dos vestígios sobreviventes da resistência ao fascismo, partiu para o Brasil para investigar Fordlandia, a utopia tropical de Henry Ford, “cidade industrial” em quase autonomia sociopolítica no meio da Amazónia que acabou por desaparecer ao fim de 17 anos. Dessa exploração nasceu Fordlandia Malaise, objecto denso e exigente que teve estreia no Forum de Berlim (quer com projecção em sala de cinema tradicional quer com exibição em espaços alternativos) mas que trabalha ainda e sempre no abismo entre a imagem e o seu contexto, e nas camadas que o tempo vai sobre ela depositando (ou eliminando).
Mais narrativa Catarina, mais austera Susana, mas ambas trabalham a noção do que se perde quando tudo o que vai ficando intocado são as imagens – Jorge Jácome abstrai até essas mesmas com o seu multi-viajado Past Perfect, que tem tido o mais fulgurante percurso internacional de uma curta portuguesa em 2019 (15 presenças em todo o mundo desde a sua estreia na Berlinale Shorts, incluindo no prestigiado programa New Directors/New Films do nova-iorquino Lincoln Center, e vitórias em Hamburgo e no Indielisboa).
Past Perfect “colide” com O Mar Enrola na Areia e com outro título estreado no Indie, Bela Mandil de Helena Estrela, na primeira das duas sessões do Panorama Nacional (domingo 7 às 23h). Na segunda (sábado 13 às 23h), Fordlandia Malaise cruza-se com o vencedor da competição de curtas do Indie, A Casa, a Verdadeira e a Outra, Ainda Está por Fazer de Sílvia das Fadas, olhar sobre cinco experiências arquitectónicas europeias entendidas em simultâneo como outsider art e elogio do artesanato, utopias esquecidas mas que criaram as raízes que Ford não conseguiu na Amazónia.
A competição nacional, essa, arranca segunda-feira com Sol Negro de Maureen Fazendeiro, A Fábrica de Pedro Neves e Destiny Deluxe de Diogo Baldaia, os primeiros três dos 16 filmes portugueses seleccionados para 2019 — e os primeiras três dos 13 filmes nacionais em estreia mundial no Curtas.