Lei de Bases da Habitação viabilizada apenas pela esquerda
PSD e CDS-PP vão votar contra o documento que foi apresentado, pela primeira vez, em Abril de 2018. Com a votação na globalidade nesta sexta-feira em plenário fica encerrado um processo de vários meses. Helena Roseta, que o desencadeou, diz que se vive “um dia histórico”.
Terá os votos favoráveis do PS, do PCP e do Bloco de Esquerda, e os votos contra do PSD e do CDS-PP. Sem surpresas, a maioria parlamentar que tem dado suporte ao Governo socialista vai viabilizar a primeira Lei de Bases da Habitação, onde ficam escritas as bases do direito à habitação consagrado na Constituição, e define “as incumbências e tarefas fundamentais do Estado na efectiva garantia desse direito a todos os cidadãos”. “Esta Lei de Bases de Habitação é uma lei histórica”, começa por considerar Helena Roseta, deputada independente eleita pela bancada socialista e a responsável por desencadear este processo legislativo, dizendo de seguida que o importante nesta Lei é “o caderno de encargos que fica para o futuro”.
Entre a primeira versão apresentada por Helena Roseta em Abril de 2018, e que foi submetida a discussão pública até ao passado mês de Setembro, e a redacção final da lei que vai ser hoje aprovada pelo plenário vai uma grande distância, mas Roseta está satisfeita com o resultado. “Eu fiz o primeiro texto e participei activamente no segundo. São ambos da minha autoria”, refere, dizendo que em alguns casos foi ela que mudou de ideias e noutros não conseguiu convencer o PS das suas propostas, pelo que as apresentou autonomamente (uma delas, a da necessidade de deixar definido o que é o arrendamento acessível, não passou). Também o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português, que apresentaram em Outubro e em Dezembro, respectivamente, as suas propostas, se revêem no resultado final e no documento que foi trabalhado artigo a artigo, e discutido quase vírgula a vírgula.
Este trabalho foi desenvolvido no seio do Grupo de Trabalho da Habitação, que teve mais de uma centena de reuniões, e onde se discutia se o Estado é o “único garante do direito à habitação”, como propunha o BE, ou se é, apenas, “o garante da habitação”, como ficou na redacção final e com o que isso significa, por exemplo, para os deputados do PSD, que insistiram nesta formulação para abrir as portas à participação da iniciativa privada para resolver as carências habitacionais.
Semânticas à parte, e em resumo, o que ficará definido com a primeira Lei de Bases da Habitação do país é que o Estado passa a ter a obrigação de garantir o direito a uma habitação condigna para todos os cidadãos, e que a habitação passa a ter uma função social, pelo que o uso efectivo dos imóveis ou fracções com vocação habitacional devem ser utilizados para esse fim. Mais do que estes princípios gerais, a Lei de Bases da Habitação também obriga à existência de um Plano Nacional de Habitação e a cartas municipais de habitação, de forma a haver uma estratégia definida e dotação orçamental consagrada para executar os respectivos planos. Por fim, institui uma entidade pública que ficará responsável pela monitorização do programa e pelo cumprimento dos deveres de conservação, manutenção e reabilitação dos proprietários.
O que ficou de fora
Pelo caminho ficaram propostas como a requisição de imóveis, que surgiu na primeira proposta do PS, ou a posse administrativa dos prédios privados devolutos, como era requerida pelo PCP – mas ficou estabelecido o incentivo ao uso dessas habitações para responder às necessidades habitacionais. Também há muitas disposições sobre a protecção e o acompanhamento no despejo (referindo que não pode haver despejo sem garantir previamente soluções de realojamento), e que não pode ser executada uma penhora sobre habitação para satisfação de créditos fiscais ou contributivos. A Lei de Bases da Habitação também deixa a porta aberta à possibilidade da dação de imóveis em cumprimento de dívidas, mas apenas no caso em que tal esteja definido contratualmente, ou em que haja uma legislação específica a regulamentá-la.
O facto de esta lei remeter para “legislação complementar e regulamentar” – que, de acordo com o articulado, deve ser “elaborado no prazo de nove meses quando outro prazo não esteja indicado” – é que ajuda a explicar a importância do “caderno de encargos que fica para o futuro” definido por Helena Roseta. “Vai ser preciso avançar em muita legislação, mas não é preciso esperar pelo Governo para a fazer. O Parlamento pode tomar a iniciativa”, lembra a arquitecta.
O entendimento diferente entre deputados na bancada do PS e o Governo, que apresentou umas semanas depois o seu próprio pacote de habitação, esteve na origem de algumas desavenças e levou mesmo à saída de Helena Roseta da liderança do grupo de trabalho então criado. A Lei de Bases acabou por ser votada no final de todo o processo legislativo.
Foi só com a mudança de tutela que o Governo assumiu a entrada no processo. Quando a pasta da Habitação saiu da alçada do ministro do Ambiente, Matos Fernandes, e passou para a de Pedro Nuno Santos, o ex-ministro dos Assuntos Parlamentares voltou a assumir a sua experiência como negociador com os partidos da maioria parlamentar. Foi depois dessa altura que BE e PCP decidiram deixar cair os seus projectos de lei para viabilizar a proposta socialista. O PSD, que não apresentou nenhum projecto de lei, mas fez propostas de melhoria ao projecto do PS, também viu algumas serem aprovadas. Mas continua a não se rever na versão final do documento, mesmo depois de ter reconhecido “o recuo do PS, que apresentou uma nova versão bem menos radical”, como disse ao PÚBLICO o deputado António Costa e Silva.
Helena Roseta prefere sublinhar que o processo de discussão e de redacção desta lei foi amplamente discutido, trabalhado e participado, “sempre com toda a transparência, todos os documentos públicos, todas as sessões abertas aos jornalistas”. “Aqui não há alçapões. Todos participaram neste resultado final e este é que é um processo democrático.”