Stranger Things — a televisão a olhar para adolescência pelo filtro da ficção científica

Eleven e companhia trocam as bicicletas pelo centro comercial neste início de Verão cheio de teenagers televisivos. A adolescência é o novo Upside Down. Sem spoilers.

,Saison 3 de Stranger Things
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“Já não somos miúdos”, avisava o primeiro trailer da terceira temporada de Stranger Things, a actual jóia da coroa do Netflix. A popularíssima série regressa esta quinta-feira e evoluiu para um dos temas preferidos das séries: a adolescência, esse lugar estranho. Este Verão, nas plataformas de streaming, juntam-se aqueles que foram adolescentes nas décadas de 1980 ou de 2000, e que vivem, respectivamente, em Stranger Things ou Veronica Mars, com os adolescentes de 2019 que encontramos em Euphoria e Trinkets.

No terreno sobrelotado das séries, Stranger Things é o acontecimento televisivo pós-A Guerra dos Tronos de 2019 — para já. Só no Netflix, e apenas para mencionar títulos de popularidade mais transversal e que convidam ao visionamento de seguida (binge-watch), ainda aí vem Casa de Papel, já no próximo dia 19, e no final do ano haverá The Crown, mas é Stranger Things que tem colecções nas lojas de moda rápida e que originou uma BD prequela — o serviço não revela audiências mas segundo um estudo de 2018, ano em que nem houve episódios novos da série, esta era a mais vista nos serviços digitais. É uma aventura popular entre os espectadores mais jovens, importante demografia Netflix, e tem o poder do reconhecimento para os mais maduros. Produto desta plataforma digital nascido em 2016, a série dos irmãos Ross e Matt Duffer é assumidamente um fruto nostálgico que capitaliza tanto o gosto pela cultura americana dos anos 1980 quanto o fetiche da ficção científica. 

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Eleven e Max Netflix

Até esta terceira temporada, a série andava de bicicleta pelas cidadezinhas do imaginário Spielberg e Stephen King com um grupo de miúdos e uma jovem estrela chamada Millie Bobby Brown, que dá rosto à personagem Eleven. Agora, já não são “just kids” como escreveria Patti Smith, são habitantes do “lugar mais cruel no planeta” — a adolescência descrita por Tori Amos.

Nestes oito novos episódios, debatem-se ainda com o Upside Down, esse tremendo mundo ao contrário de negrume e monstros, e com as famílias despedaçadas de Winona Ryder ou do xerife Jim Hopper, bem como com “novos e velhos inimigos”, avança a sinopse desta terceira temporada. Mas é Verão, há um novo centro comercial na cidade e o romance e os diferentes interesses do grupo empurram os protagonistas em diferentes direcções. Depois de duas temporadas em que as homenagens eram a Conta Comigo, E.T. ou a jogos como DigDug, as referências são agora Viver Depressa — Fast Times at Ridgemont High e não tanto Os Goonies. Mas, disseram os irmãos Duffer à revista Entertainment Weekly, a série vai citar novamente Steven Spielberg em Indiana Jones ou Parque Jurássico, recorda de novo o John Carpenter de Veio do Outro Mundo e junta-lhes Em Busca da Esmeralda Perdida, Fuga à Meia-Noite e “os filmes de David Cronenberg”.

Winona Ryder é Joyce Byers e David Harbour é o xerife Jim Hopper
Os irmãos Duffer na rodagem Tina Rowden/Netflix
Millie Bobby Brown na rodagem Tina Rowden/Netflix
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Winona Ryder é Joyce Byers e David Harbour é o xerife Jim Hopper

"Crescemos todos tanto"

Hawkins vive em pleno o feriado de 4 de Julho de 1985 (um dia depois da estreia nos EUA do icónico Regresso ao Futuro) e Eleven, Will e companhia estão nas férias do 9.º ano. As personagens estão na adolescência e, claro, os actores que as encarnam também (temos-los visto a crescer em tempo real, à medida que a série avança): “É de doidos – tipo, o Caleb [McLaughlin, que interpreta a personagem Lucas Sinclair] tem barba. Toda a gente é alta. Crescemos todos tanto”, comentou ao New York Times o actor Noah Schnapp, que interpreta o martirizado Will Byers. É o mais novo do grupo de actores que tinham nove ou dez anos quando prestaram audições para a série. Agora, o elenco central tem entre 14 e 17 anos. À frente e atrás das câmaras, o drama que é a adolescência torna-se protagonista.

“Sempre soubemos que, na terceira temporada, o tema ia mudar. É sobre a forma como todas as personagens passam por mudanças nas suas vidas, no seu desenvolvimento, nos seus corpos. E essas mudanças não acontecem todas à mesma velocidade”, disse o produtor executivo da série, Shawn Levy, ao jornal Boston Herald. “Há muita dor e conflito que pode vir desses diferentes níveis de mudança.” Essas tensões são um íman para a narrativa televisiva porque a adolescência “é uma parte muito dramática da nossa vida, e o drama é bom!”, frisava o co-autor da série, Ross Duffer, ao site IndieWire em 2017.

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Mike, Will e Lucas Netflix

No fundo, Stranger Things quer agora retomar a tradição do olhar televisivo sobre esse espinhoso período de mudança, definição, ócio e expectativa — “a adolescência é como um cacto”, postulou a escritora Anaïs Nin. Chega num momento em que há novos olhares sobre a idade do armário na televisão. Eleven, Will, Mike ou Max são os adolescentes dos anos 1980 e 90 vistos pelos olhos de 2019. Já os teenagers de 2019 estão em muitas versões nos ecrãs, sobretudo no streaming, com o retrato de sexualidade, drogas e excesso de Euphoria (HBO Portugal), ou com a nova candidata a binge watch do Netflix, Trinkets — um retrato de jovens inimigas que se tornam amigas em torno da cleptomania, a forma como lidam com o abuso e o trauma.

No início do ano, foi também o Netflix que forneceu uma dose de Sex Education, a série com Gillian Anderson e Asa Butterfield, tal como em 2018 tinha garantido que Everything Sucks! e apresentado as segundas tranches de 13 Reasons Whyda comédia American Vandal e novos episódios da novelesca Riverdale. Será também em streaming, e no Hulu (serviço que não está disponível em Portugal mas cujos conteúdos têm sido distribuídos em diferentes canais), que a série de culto dos anos 2000 Veronica Mars, sobre uma adolescente detective, regressará para uma versão idade adulta a 26 de Julho.

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Igualmente adultas são as actrizes Maya Erskine e Anna Konkle, que na casa dos 30 anos são as protagonistas das suas próprias histórias de adolescência em PEN15, uma comédia Hulu estreada no TVSéries. Já em 2018, a série documental e cómica The Mortified Guide aterrou no Netflix com os antigos diários e as histórias constrangedoras do crescimento de dezenas de norte-americanos contadas na primeira pessoa. A série animada Big Mouth, do actor e comediante Nick Kroll, é outra revisitação das embaraçosas consequências das explosões hormonais de adolescentes mundo fora.

Num mundo televisivo em que até Febre em Beverly Hills vai voltar para um reboot, as séries de adolescentes vêm de uma tradição que nas últimas três décadas tanto produziu Buffy, a Caçadora de Vampiros, Freaks and Geeks ou, em Portugal, Os Melhores Anos quanto Gossip Girl ou Morangos com Açúcar. Ou Skins, Friday Night Lights, Glee, Adultos à Força e The O.C., ou a breve mas influente My So-Called LifeQue Vida Esta, “o retrato mais dolorosamente honesto da adolescência que alguma vez passou na televisão”, para o autor de séries Greg Berlanti, citado pela Entertainment Weekly

Nas séries sobre a adolescência, a comédia — ou os vampiros, a riqueza o futebol americano... — mistura-se com o drama — da orfandade ao sexo ou ao amor. Os irmãos Duffer descrevem precisamente esta nova leva de episódios como “a temporada mais despudoradamente divertida e ao mesmo tempo a mais horripilante e a mais intensa”.

Na verdade, se parece que esta chegada de Stranger Things à puberdade foi anunciada em Março por um trailer ao som da “teenage wasteland” de Baba O’Riley dos The Who, em 2017 ela já lá estava. Na segunda temporada, elogiava o crítico David Fear na Rolling Stone, “desponta, depois do pastiche de maus penteados, referências a blockbusters vintage e à era Reagan, uma história de miúdos a lidarem com o caminho atribulado, e muitas vezes traumático, das dores de crescimento da adolescência”. O trailer incluía um convite: “Venham pelo tipo de letra à Stephen King. Fiquem para um Stranger Things que surpreendentemente smells like teen spirit”.

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