O leite precisa de resgate?

A verdadeira campanha informativa seria uma que reconhecesse que o leite é um tipo de alimento que, não obstante o seu bom aporte nutricional e certos benefícios associados, apresenta também possíveis riscos para a saúde.

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Nikolai Chernichenko/Unsplash

De acordo com o Grupo Parlamentar do Partido Socialista (PS), que propôs recentemente (mais) uma campanha nacional sobre os benefícios do consumo de leite, ainda não se faz suficiente publicidade às supostas virtudes do leite. Permitam-me discordar.

Desde os hiperbólicos anúncios da Mimosa do leite que é “boooooom” e “parte de nós”, às vacas que vivem “felizes” e “ao ar livre” dos Açores, os portugueses têm vindo a ser bombardeados sistematicamente com publicidade focada nos ditos benefícios do consumo de lacticínios, quer na televisão, na rádio e nos jornais, como ao passearem-se nas ruas de qualquer cidade. É inescapável, quase tanto como os impostos e a morte.

E campanhas também não faltam. A Federação Nacional das Cooperativas de Produtores de Leite (Fenalac) lançou a campanha “Quero mais Leite”, com o apoio financeiro da União Europeia e de inúmeras figuras públicas, como do próprio Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo Sousa, do tenista João Sousa e da actriz Carla Chambel. E também a Associação Interprofissional do Leite e Lacticínios (ALIP) fez uma campanha chamada “Leite e lacticínios para uma alimentação saudável”, com o apoio da Direcção-Geral da Saúde, distribuindo material informativo na maioria dos supermercados.

Apesar dos esforços da indústria e do Estado português em recuperar o sector do leite e restabelecer os níveis de consumo da década passada, o consumo têm vindo a decrescer continuamente desde 2010, caindo 13,8% entre 2010 e 2017, assinalando assim uma crise efectiva do sector. Isto é factual e está para além de disputas políticas ou ideológicas. 

Mas voltemos ao projecto de resolução do PS. Os deputados socialistas apontam diversas razões para explicar a crise do leite: argumentam que se deve ao fim das quotas leiteiras, ao embargo russo e à crise económica. Mas enfatizam sobretudo o papel das bebidas vegetais alternativas ao leite neste fenómeno, referindo que este segmento da indústria utiliza de forma ilegal a denominação de “leite”. Um dos deputados socialistas eleito pelos Açores, João Azevedo Castro, vai ao ponto de classificá-las como “falso leite” e afirmar que as bebidas vegetais procuram “disfarçar-se de leite”.

Na verdade, sabemos que o Tribunal Europeu vedou a possibilidade de as bebidas vegetais se designarem como “leite” e tem havido um cumprimento dessa directiva. Nas embalagens de bebidas vegetais pode ler-se tipicamente algo como “bebida de soja” ou “bebida à base de arroz”, mas não se encontra a palavra “leite” em parte nenhuma. 

E se é verdade, por um lado, que as bebidas vegetais podem ser confundidas com o leite de vaca, o inverso também pode suceder, com as marcas de leite a procurar replicar o sucesso das suas adversárias de mercado. Foi isso que procurou fazer a Mimosa, ao colocar no mercado bebidas de leite de vaca com vestígios de amêndoa e de aveia que facilmente podem também ser confundidas como bebidas vegetais, não o sendo — algo para o qual a DECO alertou.

Os socialistas afirmam também que existem “verdadeiras campanhas” de desinformação contra o consumo de leite levadas a cabo pelos meios de comunicação social. A adjectivação das campanhas é claramente infeliz porque uma campanha ou é “verdadeira” ou é “desinformativa”; não pode ser as duas coisas.

E, continuando, referem que estas campanhas “de desinformação” associam o consumo de leite a “influências negativas no bem-estar e saúde humanas, contribuindo para um aumento das preocupações dos consumidores relativamente a este produto”.

E não serão essas preocupações, em parte, legítimas? Será o leite efectivamente um alimento sacrossanto e intocável, que não apresenta qualquer risco, de acordo com a evidência científica disponível, para a saúde humana? Num debate imparcial, sem discursos ideologicamente infundidos, podemos admitir quer benefícios como riscos associados ao consumo de leite de vaca.

Se por um lado é verdade que o leite possui uma excelente biodisponibilidade de cálcio, também é verdade que não existe uma correlação estabelecida cientificamente entre o consumo de cálcio presente no leite e um risco reduzido de fracturas ósseas ou prevenção da osteoporose. Aliás, no caso das mulheres que consomem leite com frequência, pode aumentar o risco de fracturas nas ancas na idade adulta, conforme verificou um estudo longitudinal que envolveu mais de 100.000 homens e mulheres, com observações feitas durante 20 anos.

E se o leite até pode ter um efeito preventivo e estar associado a um risco reduzido de cancro colo-rectal, por exemplo, os riscos negativos associados ao seu consumo não são exactamente inexistentes. Com efeito, estudos bastante representativos sugerem um risco aumentado de cancro da próstata em associação com o consumo regular de lacticínios.

Estima-se ainda que cerca de 65% da população possua algum grau de intolerância à lactose após o período da infância. E embora esta taxa varie consideravelmente consoante as populações, os sintomas associados a esta intolerância, como dor abdominal, inchaço, diarreia e náuseas, que podem afectar seriamente a qualidade de vida, são frequentemente atribuídos a outras causas, escapando a um diagnóstico adequado.

A verdadeira campanha informativa seria uma que reconhecesse que o leite é um tipo de alimento que, não obstante o seu bom aporte nutricional e certos benefícios associados, apresenta também possíveis riscos para a saúde, que merecem observação, e uma que reconhecesse que existem fontes de cálcio e proteína alternativas, sem os mesmos riscos associados.

No projecto de resolução do PS lê-se também que não se conhece “qualquer outro que o possa substituir” mas, na verdade, o cálcio disponível no leite existe numa panóplia de outros alimentos, como em vegetais com baixos níveis de oxalatos (compostos que bloqueiam a absorção), como é o caso dos brócolos e couves, assim como nos frutos gordos (amêndoas, avelãs), entre outros.

E embora a maioria das bebidas vegetais não possua um perfil nutricional comparável ao do leite de vaca, conforme sucede no caso da bebida de amêndoa ou de arroz, nutricionalmente pobres, a bebida de soja tem um perfil bastante mais próximo do leite de vaca e fornece um excelente aporte de cálcio e proteína, entre outros minerais e vitaminas.

O Estado português deve por isso reflectir se aquilo que os portugueses efectivamente precisam é de um estado paternalista e subserviente aos interesses de um sector da indústria, ou se, utilizando as palavras dos socialistas no projecto de resolução — isto é, “procurando garantir o respeito pela vontade e liberdade individual” —, permite aos cidadãos que estes tomem decisões livres enquanto consumidores, sem serem vexados por um chorrilho interminável de publicidade hiperbolizada e campanhas esbanjadoras do bolso dos contribuintes.

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