Medicina legal em greve pela primeira vez. Adesão é de 100%, dizem sindicatos

Dois sindicatos que convocaram paralisação dizem que só um dos 24 gabinetes do Instituto Nacional de Medicina Legal não aderiu à greve. Nos últimos anos, 14 especialistas saíram do instituto, diz a Ordem dos Médicos. Ministério da Justiça retorque que os especialistas do mapa do instituto passaram de 43 para 63 entre 2016 e este ano.

Foto
Sala de autópsias do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses sa sergio azenha - colaborador

Dobrila Nikolic decidiu sair no ano passado do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF), onde estava há 11 anos, para trabalhar no sector privado.  Faz agora 20 horas por semana numa seguradora, ganha mais dinheiro do que recebia no instituto onde trabalhava o dobro de horas, mas o melhor, diz, é que conquistou “qualidade de vida”. Ao mesmo tempo, continua ligada ao instituto, agora com uma avença no gabinete de Setúbal, onde numa manhã por semana faz autópsias para “matar as saudades”.

Dobrila é um dos 14 especialistas em medicina legal que saíram do quadro do INMLCF nos últimos anos, pelas contas da Ordem dos Médicos. Pode parecer pouco, mas é muito significativo quando se olha para o universo destes especialistas no instituto – actualmente 63, no total, para “cobrir todo o território do continente e ilhas”, frisa, lembrando que está previsto um quadro de 215 profissionais.

A médica saiu por causa das condições laborais e da falta de progressão na carreira e diz que não pensa em voltar porque a carga de trabalho no instituto é “insustentável”. “Agora tenho uma vida. Não tenho trabalho em atraso. Levo a minha filha à escola e vou buscá-la”, ilustra.

Foi justamente para lutar por melhores condições de trabalho e por uma carreira médica na instituição que nesta quarta-feira e na quinta-feira os especialistas em medicina legal decidiram fazer greve. É a primeira paralisação na história desta especialidade e os dirigentes sindicais garantem que está a ter uma adesão excepcional. Só um dos 24 gabinetes médico-legais do INMLCF não aderiu ao protesto e a adesão dos médicos da sede e delegações de Lisboa, Coimbra e Porto era de 100%, segundo as duas estruturas sindicais que convocaram a greve, o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) e a Federação Nacional dos Médicos (Fnam).

“Com esta expressão, esperamos que a ministra da Justiça perceba que tem aqui um conjunto de médicos que trabalham muito mais do que devem e são cerca de um terço do que deveriam ser”, disse à Lusa o secretário-geral do SIM, Jorge Roque da Cunha, frisando que a contratação de profissionais em prestação de serviços já representa mais de 60% do total do trabalho do instituto. E estes, sublinha, recebem valores “seis vezes superiores”.

O Ministério da Justiça não adiantou dados sobre a adesão à greve, mas, em resposta escrita ao PÚBLICO, contraria os números da Ordem dos Médicos e dos sindicatos, sublinhando que o mapa do instituto tem vindo “progressivamente a ser preenchido no que se refere à carreira médica de medicina legal”,que passou "de 43 em 2016 para 63 actualmente”. Assinala ainda que, entre 2017 e 2019, “saíram apenas cinco médicos de medicina legal" do instituto, dois deles por aposentação.

Tratamento igual ao do SNS

Os médicos agora em greve reclamam também um "tratamento pelo menos igual ao que ocorre no SNS [Serviço Nacional de Saúde]”, frisa Roque da Cunha. “Estes médicos ainda estão mais prejudicados do que os do SNS. Passam anos e anos como especialistas e esperam dezenas de anos pelos concursos para seniores”, acentua.

Dobrila Nikolic, que é dirigente do Sindicato dos Médicos da Zona Sul (Fnam), afirma que esteve dois anos a trabalhar como especialista e a receber com médica interna e tem colegas que “ficaram quatro a cinco anos” nesta situação. “Não dá”, remata a médica que fazia no instituto três autópsias por dia, em média. Mas a maior parte do trabalho, cerca de 90%, são “perícias em pessoas vivas”, desde vítimas de todo o tipo de violência, de acidentes de viação e de trabalho, vítimas de má prática médica, um trabalho “muito sensível”.

Além da melhoria “urgente” das condições de trabalho, os sindicatos reclamam uma “equiparação plena à verificada para os médicos do Ministério da Saúde”. A Ordem dos Médicos também já criticou “a desigualdade de tratamento e a negligência do Ministério da Justiça para com os médicos especialistas em Medicina Legal”. Os responsáveis da OM avisam que esta situação “pode conduzir, num período inferior a 10 anos, à extinção da especialidade, caso não sejam desde já tomadas medidas urgentes”.

Em causa está também a proposta de lei recentemente aprovada pelo Conselho de Ministros e em discussão no Parlamento que “abre portas à privatização” do actual sistema médico-legal público, “permitindo a realização de avaliações periciais por empresas privadas”, segundo os dirigentes dos dois sindicatos. “Não compreendemos que o Governo, no final da legislatura, apresente no Parlamento uma possibilidade de privatização deste instituto. Os nossos médicos do INMLCF não querem um instituto privado, querem um instituto independente e público. Não fazia agora sentido que o laboratório da polícia científica da PJ fosse privatizado, que de algum a maneira não fosse garantida a independência destas peritagens”, critica Roque da Cunha.

O Ministério da Justiça retorque que “não há qualquer intenção de privatização do sector”. “Pelo contrário, foram tomadas medidas que reforçam a capacidade de resposta deste instituto público”, acentua, explicando que a proposta de lei que altera o regime jurídico da realização das perícias médico-legais e forenses “está orientada exactamente no sentido da diminuição progressiva da necessidade do recurso a prestadores externos que vêm apoiando os serviços médico-legais desde há várias décadas”.

Acrescenta que “a possibilidade de contratualização interna de produção adicional com os médicos do mapa do INMLCF apoiará a excelente recuperação de pendências que tem vindo a suceder, permitindo que tal ocorra através da colaboração dos médicos do mapa que o desejem, com remuneração adicional”.  E afirma ainda que “assegurou as primeiras 10 promoções na carreira médica de medicina legal desde 2005”.
 

Sugerir correcção
Comentar