Convenção da Saúde não quer um SNS para “pobres” nem “gerido por preconceitos”
Conclusões alertam para um Serviço Nacional de Saúde a dar sinais de cansaço e deixa um recado aos políticos: “O sistema de saúde é complexo e não pode ser objecto de intervenções pouco pensadas.”
“Não queremos um SNS [Serviço Nacional de Saúde] para os pobres, porque isso seria o fim da universalidade, equidade e solidariedade como a conhecemos e idealizámos e marginalizaria no sistema os que, por via do rendimento, não podem exercer a sua liberdade de escolha. Não queremos ser geridos por preconceitos, conflitos de interesse, decisões pouco informadas, sem avaliar o que se faz de forma transparente seja público, privado ou social”, disse nesta terça-feira Ana Paula Martins, bastonária dos farmacêuticos, no discurso que apresentou as conclusões da Convenção Nacional da Saúde – A Agenda da Saúde para o Cidadão.
As conclusões, de cerca de 150 organizações de saúde que se juntaram a esta iniciativa, alertam para um Serviço Nacional de Saúde (SNS) que “dá sinais de cansaço depois de anos seguidos de resiliência e resistência dos profissionais”, sem a renovação de infra-estruturas e falta de investimento planeado. É “tempo de acção”, disseram as associações nas conclusões, apresentadas esta terça-feira em Lisboa.
“E é um excelente momento, pela proximidade das eleições legislativas, para que os agentes políticos apresentem as suas propostas concretas para solucionar os problemas concretos e, sobretudo valorizar as oportunidades também elas concretas e já há muito identificadas”, afirmou Ana Paula Martins.” E tudo isto porquê? Porque os portugueses não podem ter listas de espera de anos por uma primeira consulta da especialidade ou cirurgias, não podem ter as enormes falhas de medicamentos que têm actualmente na nossa rede de farmácias, não podem esperar eternidades por tratamentos inovadores que podem fazer a diferença, não podem continuar a não ter cuidados continuados e paliativos para si e para os seus quando necessitam, que não só gera sofrimento e desesperança, mas sobrecarrega desnecessariamente as famílias e os cuidadores, exaustos e perdidos num sistema que não é amigo do cidadão.”
Na saúde “tem que se fazer bem”
As conclusões deixam também um recado aos partidos políticos no momento em que debatem uma nova Lei de Bases da Saúde. “O SNS e o Sistema de Saúde não podem ser uma fonte de problemas para os portugueses. Têm de ser a solução permanente, um factor de confiança nas nossas vidas, um vector de desenvolvimento e de captação de investimento, um orgulho para o país”, salientou a bastonária dos farmacêuticos.
“O sistema de saúde é complexo e não pode ser objecto de intervenções pouco pensadas, sujeitas a imediatismos eleitorais ou interesses conjunturais. Na saúde não chega fazer muito...tem que se fazer bem. E defender o interesse público, que não tem cor política nem é propriedade de uns ou outros. O bem comum faz parte da defesa intransigente de princípios fundacionais da democracia e realiza-se na atitude de cada um de nós. Todos somos responsáveis pelo bem de todos e temos, por isso mesmo, responsabilidades não apenas de identificar o que está mal, mas de apresentar soluções”, continuou.
As conclusões salientam ainda a questão do subfinanciamento crónico, tantas vezes apontado por vários especialistas e intervenientes do sector da saúde, lembrando que isso “corresponde a uma opção política que tem vindo sucessivamente a ser concretizada, porque olha para a saúde como uma despesa e não como um investimento que torna o país economicamente mais viável”. “É altura de perguntar aos portugueses onde querem ver o seu dinheiro investido”, afirmou.
“Gastamos energias vitais a discutir o acessório, os modelos de relacionamento entre os privados e o público, o espaço do sector de economia social, indiferentes à perplexidade e indiferença dos cidadãos perante temas que não percebem e sobretudo que nada acrescentam à sua vida quotidiana”, salientou Ana Paula Martins, referindo que os problemas se multiplicam todos os dias e as pessoas procuram soluções para terem a resposta que precisam.
É por isso que os cidadãos destacam três das 14 prioridades da agenda da década, que resultou do primeiro encontro da convenção e foi entregue ao Presidente da República no final do ano passado: defender uma gestão mais humanizada do doente; promover o valor da saúde em todas as políticas e assegurar, na definição das políticas de saúde, a participação dos cidadãos e dos representantes dos doentes e cuidadores.
Dedicação exclusiva
Na sessão de encerramento, o bastonário dos Médicos não deixou passar em branco a questão que tem dominado a agenda política das últimas semanas. “Combater as desigualdades não é discutir as parcerias público-privadas, é discutir efectivamente o reforço do nosso bem maior que é o SNS. Cidadãos mais saudáveis são mais produtivos.”
Miguel Guimarães reforçou que é “inaceitável” a existência de listas de espera para consultas e cirurgias, matéria que merece a “indignação” de todos. “Temos de resolver a questão do acesso rapidamente”, afirmou, dizendo que “se o poder político o entender" seria possível dar um médico de família a todos os portugueses rapidamente.
O bastonário acrescentou que propôs aos “ministros da saúde" a possibilidade de os médicos poderem optar por trabalhar em dedicação exclusiva no serviço público, mas ainda não teve resposta. “Precisamos de massa crítica, de jovens no serviço público”, disse.
Aos jornalistas, após a intervenção, Miguel Guimarães disse acreditar que “grande parte dos médicos iria actualmente optar” pela exclusividade no sector público. O bastonário e a Ordem dos Médicos consideram que esta possibilidade pode trazer melhores condições remuneratórias aos profissionais, além de permitir reduzir uma hora de trabalho semanal a partir dos 55 anos, anualmente, mantendo a mesma remuneração.
São benefícios que funcionariam como um atractivo para fixar médicos no SNS e que ao mesmo tempo recuperariam o que está definido no diploma das carreiras médicas de 1990.
Saúde “não deve ser confundida com a ideologia”
João Almeida Lopes, presidente da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica e do Conselho Estratégico Nacional da Saúde da Confederação Empresarial de Portugal, lembrou que “esta convenção foi pensada para e com a sociedade civil”, “com os cidadãos e com os doentes”.
“E a saúde é de todos, interessa a todos e a cada um de nós. É por isso que temos a obrigação ética e política de chegar a um entendimento que nos permita avançar”, afirmou João Almeida Lopes, que defendeu que a “saúde não pode nem deve ser confundida com a ideologia”.
“Em 2019 já não é razoável que isso aconteça. O entendimento entre nós não é facultativo, o entendimento é mesmo obrigatório”, afirmou. Um apelo de entendimento que foi repetido por vários intervenientes na convenção.