Ruben de Carvalho (1944-2019): Viver pela política, pela amizade e pela música
Aos 74 anos, morreu o último preso político com assento no Comité Central do PCP. É uma referência entre os comunistas portugueses, pela sua cultura, pela sua sabedoria de vida, pelo seu equilíbrio.
Exímio contador de histórias, senhor de um apurado sentido de humor profundo, quase britânico, conhecedor de doutrina política mas também de preparação de estratégias e de análise da actualidade, Ruben de Carvalho foi um político marcante no último meio século da história portuguesa.
E foi-o, sobretudo, pelo fascínio e pela influência que exercia ao longo das conversas que mantinha, muitas vezes em torno de uma mesa, deliciando os interlocutores também com a sua sensibilidade de gastrónomo, que ia ao ponto de se irritar com restaurantes que não tivessem guardanapos de pano e talheres de peixe.
Ruben de Carvalho morreu esta terça-feira, aos 74 anos, e era o único membro no actual Comité Central do PCP que tinha estado preso nas cadeias da PIDE durante o Estado Novo. Foi sujeito a várias detenções no Aljube e em Caxias entre 1961 e 1966, tendo sido de novo preso no início de Abril de 1974.
É uma referência na direcção e entre os militantes comunistas, tendo assumido ao longo de décadas uma atitude crítica, mas sem nunca romper ou entrar publicamente em conflito com a linha oficial do PCP. Ruben de Carvalho aderiu ao PCP em 1970 e foi funcionário do partido entre 1974 e 1997. Eleito para o comité central em 1997, integrou também a comissão executiva (1990-1992) e o conselho nacional (1992-1996).
Foi igualmente chefe de redacção do jornal partidário Avante!, de 1974 a 1995. Teve vários programas de rádio, mantendo nos últimos anos, na RDP1, o programa Radicais Livres, no qual debatia temas gerais e de actualidade com Jaime Nogueira Pinto.
Durante décadas e desde o seu início, em 1976, Ruben de Carvalho foi o responsável pela programação cultural e pela organização dos espectáculos da Festa do Avante!, marcando o panorama português de espectáculos, sendo responsável pelas primeiras actuações em Portugal de artistas como Chico Buarque, Simone ou Edu Lobo.
Livre e não-alinhado
Aquando das dissidências partidárias do final dos anos oitenta, do início dos anos noventa e do início dos anos 2000, Ruben de Carvalho manteve-se sempre formalmente ao lado das posições do líder histórico do PCP, Álvaro Cunhal. Não por seguidismo subserviente, mas pelo seu espírito de autonomia, pensamento próprio e liberdade individual.
É certo que nunca assumiu divergências de forma mediática, mas fê-lo sempre no resguardo do partido, junto de quem contava, usando o seu prestígio e a sua influência nos bastidores. É essa atitude de criticar apenas dentro de portas que o tornou um dirigente com peso político específico junto de Carlos Carvalhas, secretário-geral entre 1994 e 2002. Influência que manteve sempre também próximo de Jerónimo de Sousa.
Como dirigente comunista, foi um defensor de que o PCP fizesse o acordo com o PS, em Novembro de 2015, que permitiu a viabilização parlamentar do actual Governo de António Costa. Isso não o impedia de defender que o PCP não podia vergar e soçobrar perante os socialistas. Mas empenhou-se em defender a estratégia de convergência com o PS que, garantia, teria sido subscrita por Álvaro Cunhal e se enquadrava no pensamento político do líder histórico do PCP.
Em nota divulgada esta terça-feira, o secretariado do PCP afirma que “lamenta profundamente o falecimento do camarada Ruben de Carvalho e apresenta as mais sentidas condolências à sua família, em especial à camarada Madalena Santos, sua companheira de vida e luta.” O secretariado destaca que ele, “ao longo de toda a sua vida”, se empenhou “na luta, com o seu partido, pela liberdade e a democracia, por uma sociedade nova liberta da exploração e da opressão, o socialismo e o comunismo”.
Nascido a 21 de Julho de 1944, em Lisboa, Ruben de Carvalho envolveu-se desde cedo na luta antifascista. Em 1960, integrou a direcção da comissão pró-Associação dos Estudantes do Ensino Liceal e da Comissão Nacional do Dia do Estudante (de 1961 a 1964). Como aluno do ensino superior participou na luta académica em 1962, tendo integrado a direcção da Comissão Pró-Associação de Estudantes da Faculdade de Letras de Lisboa, em 1963, e a Reunião Inter-Associações (RIA) entre 1964 e 1965, sendo o responsável pelo Departamento de Informação.
Antes de aderir ao PCP, integrou as comissões juvenis de apoio à candidatura de Humberto Delgado (1958) e a Oposição Democrática nas eleições para a Assembleia Nacional de 1961, 1965 e 1973. Nessas eleições fez parte da Comissão Central da CDE (Comissão Democrática Eleitoral). Tendo pertencido a direcção do Movimento Democrático (MDP). Em 1974, foi chefe de gabinete do ministro sem pasta, Francisco Pereira de Moura, no I Governo Provisório.
Ruben de Carvalho foi jornalista desde 1963 no Século e depois na Vida Mundial, colaborando ainda em jornais como o Notícias da Amadora, O Diário, o Diário de Lisboa, A Capital e Diário de Notícias. Ruben de Carvalho especializou-se também em história do fado, tendo publicado vários livros sobre o tema, bem como outra obra literária.
Preferia executar
Foi eleito deputado à Assembleia da República em 1995, vereador na Câmara de Setúbal em 1997 e da Câmara de Lisboa entre 2007 e 2013. Assumia com clareza que o seu perfil não se adaptava ao que era necessário para exercer o mandato de deputado, já que se via como talhado para funções mais executivas.
Daí ter aceitado e gostado de ser candidato à Câmara de Setúbal e depois à de Lisboa, nas eleições autárquicas intercalares de 2007 na capital, cidade de que era um conhecedor, incluindo dos roteiros gastronómicos da capital.
Foi como vereador em Lisboa que ensaiou alguns consensos com o então eleito presidente da Câmara pelo PS, António Costa, que conhecia já na altura, até porque o actual primeiro-ministro é filho do escritor Orlando da Costa, que foi militante comunista e amigo de Ruben de Carvalho.