Claro que não se fazem omeletes sem ovos, nem mesmo na ciência
A desvalorização do trabalho científico a que se assiste de forma generalizada no nosso país não pode ser motivo de orgulho.
Quem tem acompanhado os muitos debates, colóquios, seminários, convenções ou intervenções de reitores e outros dirigentes de instituições de ensino superior ou de investigação cientifica conhece, seguramente, os dados relativos ao financiamento e à produção da investigação científica em Portugal. Seja qual for a fonte dos dados, do repositório da Pordata às estatísticas da União Europeia ou da OCDE, a conclusão é clara: a produção científica em Portugal tem crescido a uma taxa muito superior à do investimento em investigação e desenvolvimento (I&D).
A título meramente exemplificativo, olhemos para os dados da Pordata. A despesa em I&D em percentagem do PIB cresceu de 0,46% em 1990 para 1,24% em 2015, tendo atingido o valor máximo de 1,58% em 2009. Já o número de publicações em revistas científicas internacionais foi sempre aumentando de 1006 publicações em 1990 para 21.333 no ano 2015. Quanto ao número de publicações científicas por doutoramento realizado, este indicador cresceu de 3,0 em 1990 para 7,2 em 2015, tendo atingido o valor de 8,3 nos anos de 2010 e 2011.
Sem mais explicações, estes números são verdadeiramente impressionantes, e não é, portanto, de estranhar os orgulhosos discursos de vários responsáveis de instituições académicas e científicas, nomeadamente por parte de quem exerce funções de gestão. Quem não ouviu já a teoria de que as instituições académicas e científicas têm nas últimas décadas feito omeletes sem ovos?
Em particular, no que diz respeito às universidades portuguesas, causa-me alguma perplexidade que a comunidade científica em geral se deixe deslumbrar pelo discurso de quem apenas mostra a “impressionante” subida nos rankings internacionais e o “fraco” nível de financiamento, deixando que a utopia de fazer omeletes sem ovos possa parecer realidade. Mas qualquer pessoa sabe que não se podem fazer omeletes sem ovos, nem mesmo no campo da ciência tal é possível!
Onde estão, então, os ovos? O ingrediente principal destas omeletes tem origem no elevadíssimo número de investigadores com vínculos precários que não pesam nos encargos com pessoal das instituições e que, em muitos casos, não têm lugar na participação da vida (pouco) democrática das instituições, mas cujo trabalho é contabilizado nos indicadores de produção científica da instituição.
A esmagadora maioria destes investigadores nem sequer tem um contrato de trabalho, pois o vínculo mais comum é o de bolsa de investigação científica. Este tipo de vínculo está sujeito a renovações anuais e não contempla adequadamente as mais básicas formas de protecção social inerentes a qualquer contrato de trabalho, como por exemplo a protecção em caso de caducidade do vínculo, doença ou parentalidade.
O discurso de orgulho pelos resultados atingidos devia ser acompanhado por uma discussão mais profunda do que está na base destes resultados. Talvez fosse bom de vez em quando relembrar que uma fatia grande dos avanços da investigação científica em Portugal foi alcançada pelo trabalho e dedicação de profissionais sem estabilidade laboral e em desvantagem no acesso ao subsídio de desemprego, a uma protecção adequada em caso de doença ou parentalidade ou mesmo no acesso a um crédito bancário.
Será que é mesmo motivo de orgulho para o nosso país que se tenham atingido estes níveis crescimento em investigação científica com base tão alargada de vínculos laborais precários e indignos? Na minha opinião, não se deve desvalorizar o progresso alcançado nem exagerar no orgulho. A desvalorização do trabalho científico a que se assiste de forma generalizada no nosso país não pode ser motivo de orgulho.
Investigadora contratada ao abrigo da norma transitória da Lei 57/2017 pela Associação do Instituto Superior Técnico para a Investigação e Desenvolvimento (IST-ID, uma instituição privada sem fins lucrativos)