Um roteiro pelo Nos Primavera Sound (dito) clássico
Vimos um clássico, um histórico, uma lenda, duas revelações e uma confirmação. Dos Low a Jorge Ben, dos Viagra Boys aos Big Thief, uma viagem pela matriz original do festival.
Uma intensa viagem entre a ternura contemplativa e a transcendência noise. Duas lições de história, uma delas abarcando cinco décadas de Brasil, outra compactando outras tantas de rock'n'roll no corpo de uma banda só (e, principalmente, do seu vocalista e compositor). E ainda uma viagem pela América das palavras feitas canção bem medida, acrescida de dois espalha-brasas punk saídos de latitudes opostas – aqui a Suécia, ali a Austrália.
Sábado, no último dia do Nos Primavera Sound 2019, uma edição que, devido aos cabeças-de-cartaz J Balvin e Rosalía, foi vista como o início de uma mudança de identidade do festival, cumprimos um roteiro que seguiu aquelas que serão as marcas da sua primeira matriz, a do rock independente e da celebração da sua história.
“This evil spirit is bringing me down”, entoam os Low quando começa a anunciar-se o final da viagem por picos e vales que foi o seu concerto, baseado no mais recente Double Negative. Assim descrito, poderíamos julgar que a banda de Alan Sparhawk (guitarra e voz) e Mimi Parker (bateria e voz), os fundadores, a que se reúne no baixo Steve Garrinton, se converteu aos clichés pós-rock, mas, nesse aspecto, nada tivemos a temer. A banda de Dulluth encerrou com chave de ouro as actividades no palco Super Bock, suspendendo o tempo quando se entregava a uma espiritualidade dolente, respirada lentamente, e cortando o tempo ferozmente quando a guitarra flamejante de Sparhawk se encorpava até ser noise, electricidade à solta, luz a faiscar nos ecrãs de palco.
Na sua música, construída ao longo de um quarto de século, cabem tanto os hereges Velvet como o nostálgico Neil Young, cabe Glenn Branca e Hank Williams, cabe a palavra divina pedindo rectidão e as tentações a que só muito dificilmente resistimos. No Nos Primavera Sound foram caminhando entre os dois extremos, guitarra incandescente, voz de Mimi Parker a ecoar suavidades em fundo. “Tivemos um óptimo dia”, disse a determinado momento Alan Sparhawk, e fazemos nossas as palavras dele. “Vimos muitos amigos. Tivemos muitos pedidos [de canções]”. Não sabemos a quantos terão acedido os Low. Sabemos que, pouco antes, nos tínhamos deparado com alguém que poderia, sem qualquer dificuldade, aceder a todos os pedidos que lhe fizessem.
36 canções em 90 minutos
No palco Seat, caía a noite quando o homem de cabelo grisalho, camisa vermelha e microfone na mão informou que a sua banda tinha que se despachar. Motivo nobre: “Temos 36 canções para tocar em 90 minutos”. Os Guided By Voices, uma das mais veneradas bandas independentes americanas, a banda de Robert Pollard, o compositor sem freio – o seu cancioneiro contabiliza-se aos milhares –, o homem que amalgama como ninguém garage-rock, punk e power pop, com um par de desvios sónicos para apimentar o conjunto.
Na sua estreia em palcos portugueses, vimo-los exactamente como são: uma banda sem tempo para poses e sem pachorra para preocupações com o estilo. Pollard é o sexagenário que parece o professor cool que se torna mais cool ainda quando os alunos descobrem que tem uma banda (e foi mesmo professor e tem mesmo uma banda). É o autor de canções de curtíssima duração, com efeito máximo, que conjugam eficácia pop, o sentido dramático, de guitarra ao alto, dos The Who e uma aceleração punk não desprovida de elegância. Canção após canção e, seguindo o ritual habitual, cerveja após cerveja, Robert Pollard guiou-nos por um pequeno microcosmos do grande cosmos que é a música dos Guided By Voices, dos anos 90 de Bee Thousand ou de Alien Lanes até ao presente. Um privilégio.
O lendário Jorge Ben Jor
No que a encontros com a história diz respeito, não foi o único do último dia de Primavera Sound. Muito apropriadamente, o sol iluminava ainda o céu quando aquele balanço bom se transformou em celebração colectiva. Estávamos na pequena encosta fronteira ao palco Nos e os corpos que ondulavam ondularam ainda com maior fervor. Em palco, estava o lendário Jorge Ben Jor, figura maior da música brasileira (e da música do globo, no geral), dono de um sem número de canções que se tornaram património da Humanidade. Jorge Ben conduzira o wah wah na sua guitarra até afinar naquele Mas que nada que é a causa do ondular e do canto comunal da multidão.
Aos 74 anos, lidera uma orquestra funk-samba, Caraíbas sempre nas proximidades, que faz a festa praticamente sem pausas, groove no sítio certo, elegância irrepreensível, romantismo à flor da pele. Em vários conjuntos de medleys, ouvimos País tropical, Por causa de você, menina, Zumbi ou Take it easy my brother Charlie. Ouvimos uma figura mítica da música popular mostrar como fazer de um eterno apaixonamento – todas as canções são celebração dessa embriaguez de amor, sob as mais diversas formas – matéria-prima para uma longa e distintíssima carreira.
Tivemos portanto história. Tudo de acordo com a tradição Primavera Sound. Melhora porém, e substancialmente, se lhe acrescentarmos uma dimensão essencial: a capacidade de mostrar também uma visão do que pulsa no presente.
A meio da tarde, o palco Seat foi invadido por uns espalha-brasas suecos chamados Viagra Boys. Garrafa de vodka na mão, tronco tatuado bem exposto, o vocalista Sebastian Murphy arroja-se no chão do palco, rasteja, ergue-se novamente, pratica humor negro e humor do absurdo. Está no Porto e agradece a Barcelona a recepção, mas ninguém leva a mal a confusão. Desconfiamos que os Viagra Boys, que se estrearam o ano passado com Street Worms, serão exactamente iguais onde quer que estejam. Ou seja, uma banda que, com baixo distorcido em volume altíssimo, saxofone à Steve Mackay a soprar sobre a fúria eléctrica, e órgão e sintetizadores para compor o cenário, chafurdam na podridão e no sufoco de um futuro cinzento para daí sublimarem algo: canções que são bílis Sex Pistols em galanteio rhythm'n'blues à Dr. Feelgood, que também são balanço funk-punk e dança decadente em subterrâneo. Nada disto é novo, mas é feito com uma intensidade e uma intenção tais que se torna difícil resistir-lhes.
Neste dia, tiveram bom acompanhamento, no que à pose desbragada diz respeito nos Amyl & The Sniffers, que são uma improbabilidade tão grande em 2019 como as mullets que, sem excepção, ostentam os seus quatro elementos.
Têm uma vocalista que corre palco fora num frenesim inesgotável – e lembramo-nos, pela atitude, de Cherrie Currie, das Runaways. Têm um guitarrista que sola como um Angus Young descoberto membro dos Motorhead e uma secção rítmica que passa do hard-rock à aceleração punk com invejável naturalidade. Entre canções, brindam ao público, fazem perguntas, conversam entre si em diálogo speedado. É como se estivessem num pequeno clube a olhar toda aquela gente olhos nos olhos. Depois, Amyl há-de gritar “I've lost control”, os The Sniffers agitarão as “mullets” como chicotes e nós entregamo-nos ao headbanging sem perder tempo a pensar se há algo de chocantemente anacrónico em tudo aquilo. No momento do concerto, a questão é secundária.
Amyl & The Sniffers são completamente transparentes e a sua música não esconde nada da sua natureza: é “rawk” enquanto somatório de excessos, encenado de uma forma tão ingénua e genuína que nos deixa automaticamente do lado deles. São, em resumo, um delírio impagável, expressão que nunca poderíamos aplicar à banda que, por volta das oito da noite, no palco Seat, pôs uma pequena multidão em silêncio, suspensa nos versos que Adrianne Lenker cantava com a guitarra como única companhia.
Os Big Thief, é deles que falamos, são banda que muitos têm descoberto nos últimos anos como tesouro prezado. Esse foi o estatuto que lhes garantiram Masterpiece e Capacity, os dois primeiros álbuns, e que o novo U.F.O.F., mergulho mais profundo nas raízes folk, continuará a assegurar. Em concerto a força telúrica de U.F.O.F. é apenas evocada. A banda segue uma formatação eléctrica mais convencional, mas há algo neles, naquela americana paredes meias com a veia cantautoral da década de 1990 que não deixa de cativar. O segredo parece ser a intimidade dos versos e da voz de Adrianne Lenker, de uma beleza cristalina, frágil, atravessada por uma constante melancolia.
Com todos estes que abordámos até aqui, com o Terno, a belíssima banda de Tim Bernardes, ou com a regressada e inspirada Lena d'Água, ocupámos um recompensador dia de festival. Esta, porém, é hoje uma visão limitada do festival. O Primavera Sound abarca agora mais, abre-se a outras manifestações, a outras histórias relevantes. Tenta desenhar um quadro mais real. Só temos a ganhar com isso.