When They See Us: Ava DuVernay olhou para os cinco de Central Park
Em 1989, cinco jovens do Harlem foram condenados por um crime que não cometeram. Donald Trump pediu a pena de morte. Trinta anos depois, o Netflix volta a olhar para o caso.
Nova Iorque, Abril de 1989. Trisha Meili, que tinha na altura 28 anos, estava a correr no Central Park quando foi brutalmente atacada e violada. Deixaram-na ali, para morrer. Ficou em coma durante 12 dias. Antron McCray, Kevin Richardson, Yusef Salaam, Raymond Santana Jr. e Korey Wise, cinco jovens do Harlem, negros e latinos, que estavam na mesma noite no parque, confessaram o crime em vídeo e foram presos.
Enquanto decorria o julgamento, em 1990, o actual Presidente norte-americano Donald Trump, então um magnata do imobiliário com investimentos em Manhattan, pediu publicamente, através de uma série de anúncios publicados nos quatro principais jornais da cidade, que o estado de Nova Iorque voltasse a instaurar a pena de morte para pôr fim à vida destes adolescentes. Acabaram condenados a penas de prisão (a mais leve de cinco anos, a mais pesada de 15), reafirmadas após recurso, e permaneceram na cadeia entre seis e 13 anos. Em 2002, porém, o caso viria a conhecer um volte-face, quando Matias Reyes, que já estava preso por violação e homicídio, e que abusou de outra mulher depois de os cinco já estarem presos, confessou ter sido o verdadeiro autor do crime. A confissão de que atacara e violara Trisha Meili sozinho seria confirmada pelas amostras de ADN e de sangue recolhidas no local do crime. Os cinco condenados, conhecidos como “Central Park Five”, foram ilibados e mais tarde, já em 2014, receberam mais de 41 milhões de dólares da cidade a título de indemnização. Trump continuou a manter que eles eram culpados.
Vinte anos depois do crime, a Netflix reavalia o caso numa minissérie de quatro episódios criada e realizada por Ava DuVernay, When They See Us (Aos Olhos da Justiça, em português). A autora, que tem experiência em televisão como criadora de Queen Sugar e que em 2016 já tinha assinado para o Netflix The 13th, um documentário sobre as políticas prisionais dos Estados Unidos e o seu enviesamento racial (valeu-lhe uma nomeação para um Óscar), quis explorar a identidade e humanidade de cada um dos cinco condenados e a forma como eles e as suas famílias foram afectados pelo processo. Depois de O Caso de O.J. – American Crime Story, de 2016, é do melhor que as séries de ficção norte-americanas baseadas em crimes reais têm para oferecer.
No primeiro episódio desta minissérie (ainda que a autora se refira explicitamente a When They See Us como filme, a obra está claramente dividida em episódios), ficamos a conhecer “os cinco de Central Park” antes da fatídica ida ao parque e a forma como foram presos. Depois acompanhamos a montagem da acusação, alimentada por uma grande vontade de encontrar culpados mesmo que a vítima não se lembrasse de nada, e de transformar um grupo de miúdos não-brancos em monstros. A seguir, a polícia tenta manipulá-los, e também aos seus pais, para que confessem o crime em vídeo, num discurso cheio de incoerências e não corroborado por quaisquer outras provas.
Nesse processo, destaca-se o trabalho da procuradora Linda Fairstein, que, tal como Trump, continua até hoje a defender que os cinco são culpados e que a polícia não os coagiu a confessarem. Actualmente uma escritora de policiais de sucesso, Fairstein tem sofrido na pele algumas consequências da série: desde o lançamento dos seis episódios, no último dia de Maio, viu-se forçada a apagar a sua presença nas redes sociais e abandonar os cargos que ocupava na direcção de duas organizações sem fins lucrativos, e foi dispensada pela editora que lançava os seus livros e pela agência que a representa. Continua, contudo, a defender que não fez nada de errado, como num texto publicado recentemente pelo Wall Street Journal. When They See Us surgiu numa altura em que, por coincidência, a própria actriz que faz de Fairstein, Felicity Huffman, poderá ela própria a vir ser presa, no âmbito de um caso de fraude no acesso a universidades de elite norte-americanas.
Os episódios restantes mostram o julgamento, a prisão e a complicada vida que os cinco condenados tiveram após terem sido libertados – quatro dos cinco eram menores e foram para uma prisão juvenil, enquanto o mais velho, Korey Wise, que inicialmente nem era suspeito e se voluntariou para ser questionado só para acompanhar o amigo Yusef Salaam, passou por várias prisões para adultos onde sofreu incontáveis abusos. Mostram-nos jovens a quem a vida foi roubadas, sem cair demasiado na manipulação sentimental, ainda que possa suscitar algumas lágrimas.
Tudo isto é feito numa mega-produção que recria minuciosamente o caso, com ajuda da muito hábil direcção de fotografia de Bradford Young, que colaborou com Ava em Selma e esteve atrás das câmaras em filmes como Um Ano Muito Violento, de J.C. Chandor. Conta também com um elenco extraordinário, que inclui, entre veteranos e estreantes, nomes como Justin Cunningham, Jovan Adepo, de The Leftovers, Chris Chalk, Jharrel Jerome, de Moonlight, ou Freddy Miyares, bem como Vera Farmiga, John Leguizamo, Niecy Nash, Michael K. Williams, Joshua Jackson, Famke Jamssen ou Blair Underwood.