Dezena e meia de detenções e preconceitos estilhaçados: a história da primeira árbitra de futebol
A brasileira Léa Campos foi a primeira mulher a arbitrar um jogo profissional, numa época em que o futebol feminino era proibido por lei no Brasil. “Falta vontade política e desportiva para que o futebol feminino chegue ao mesmo patamar do masculino”, lamenta, em declarações ao PÚBLICO.
Léa Campos foi a primeira árbitra profissional do mundo. Dito desta forma simplificada, pode parecer que o feito da brasileira apenas foi de encontro a uma inevitabilidade que, com o avanço civilizacional, chegaria mais cedo ou mais tarde. Será, talvez, importante sublinhar que Léa se tornou árbitra num país que proibiu o futebol feminino entre 1941 e 1979. Num país cujo dirigente desportivo máximo lhe disse, na cara, que nunca aceitaria uma mulher nos relvados. Com 75 anos “bem vividos” — e no dia que marca o início do Campeonato do Mundo de futebol feminino — recuperamos a história de vida da pioneira da arbitragem no feminino.
“Sempre fui apaixonada por futebol. Mas, como morava no interior, nem sequer tinha bola. O meu pai fez uma bola de pano que eu levava para a escola, mas não me deixavam jogar por ser mulher. Eu dizia: ‘se não jogar, ninguém joga. A bola é minha.’ Quando ameaçava sair com a bola, lá me deixavam brincar também”, relembra, ao PÚBLICO, por telefone.
Cresceu e começou a frequentar estádios de futebol com o namorado, que brincava com o desconhecimento dela em relação a algumas das regras do jogo. Curiosa por entender o desporto-rei com maior detalhe, tomou a decisão de frequentar o curso de arbitragem. Passou com distinção, mas não lhe queriam dar o diploma: “Frequentei as aulas teóricas e as práticas, mas, na hora de me dar o diploma, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) [actual CBF] não mo deu porque a lei proibia. Fui ler a Constituição e, realmente, dizia que era não era permitido às mulheres jogarem futebol, mas não estava explícito que não podia ser árbitra. Eu queria ser o maestro da orquestra, não a orquestra.”
"Enquanto for presidente, nenhuma mulher apita"
Fez chegar o assunto a João Havelange, presidente da CBD. O homem que, posteriormente, presidiria a FIFA durante duas décadas, rejeitou veementemente os pedidos da brasileira. Um dia, farto, deixou bem claras as suas intenções. “Para tirar da cabeça esse sonho de ser árbitra, vou só dizer-lhe isto: Enquanto for presidente da CBD nenhuma mulher apita, joga ou agita bandeira”, conta Léa.
Ao mesmo tempo que pressionava os órgãos desportivos brasileiros, não ganhou “ferrugem”. Todas as semanas, apesar de estar a quebrar a Constituição brasileira, convidava as amigas para disputarem partidas de futebol. Quando a polícia irrompia campo adentro, dizia às outras raparigas para fugirem, deixando-se ficar para trás: “Eu era a responsável pelo que estava a acontecer. Nenhuma foi atrás de mim para jogar futebol. Eu é que ia atrás delas. Eram meninas todas menores, mandava-as fugir. A polícia levava-me para a esquadra, mas eu conseguia sair sem nenhum problema. Fui autuada algumas vezes, e cheguei a ter alguns problemas para conseguir passaporte. Mas nunca paguei fiança para sair, nunca tive de passar uma noite na esquadra e acabei por me tornar amiga do delegado. Ele já me dizia: ‘Vou soltar-te e sei que no domingo estarás aqui novamente’. Acabou por se tornar habitual.”
Mesmo após as palavras duras de João Havelange, não desistiu. Ao relembrar a forma como, numa questão de semanas, conseguiu obrigar o líder da CBD a alterar completamente a sua posição, Léa não consegue esconder o orgulho na voz. A estratégia foi simples: se Havelange não cedia, falaria com Emílio Médici, Presidente do Brasil, na tentativa de que este apoiasse a sua luta e pressionasse o líder da CBD.
Foi convidada por Médici para um encontro, em Brasília. Extremamente nervosa, conseguiu expor em poucos segundos o que pretendia. “Fui a Brasília, encontrei-me com ele, e disse-lhe que tinha recebido um convite do México para arbitrar no Campeonato do Mundo de futebol feminino, mas que não o poderia fazer porque João Havelange não me queria dar o diploma. Escreveu imediatamente um bilhete para que o presidente da CBD o fizesse”, relembra.
Munida da nota assinada pelo chefe de Estado, tentou encontrar-se com Havelange. Este não a quis receber. Mudou de ideias quando soube que Léa estava acompanhada por um homem da comitiva de Médici, que fazia questão de obter uma resposta ainda naquele dia — que, curiosamente, antecedia a despedida de Pelé dos relvados. O presidente da CBD leu o manuscrito. A rubrica do homem mais poderoso do país não passou despercebida e, aproveitando a presença da comunicação social no edifício, convocou uma conferência de imprensa. "Perante os jornalistas, mostrou orgulho e alegria por, no mandato dele, se estrear a primeira árbitra de futebol profissional. Durante quatro anos prejudicou-me...muita falsidade”, recorda, ainda incrédula.
Acidente ditou final abrupto de carreira
Após décadas de luta, a carreira de Léa Campos acabaria por se revelar efémera. Nos quatro anos em que foi árbitra profissional, chegou a dirigir várias partidas internacionais, fazendo também alguns jogos em Portugal. Lembra-se, em particular, de ter arbitrado uma apresentação oficial do plantel do Gil Vicente, no início da década de 70. Seria convidada para se tornar árbitra na Federação de Futebol Argentino, mas, numa questão de segundos, tudo mudou.
Em 1974, o autocarro em que seguia embateu contra um camião a alta velocidade. Feriu a perna esquerda com seriedade, precisando de dezenas de cirurgias de reconstrução. Os dias enquanto árbitra profissional tinham chegado ao fim. Quando regressou do hospital, recebeu uma visita especial: Eusébio da Silva Ferreira, amigo pessoal, fez questão de a procurar e dar o seu apoio. “Quando sofri este acidente, o Benfica foi jogar a Belo Horizonte e o Eusébio foi a minha casa para me visitar. Pediu a uma rádio o meu endereço e foi lá falar comigo”, relembra, emocionada.
Fazendo uma análise à evolução do futebol feminino nas últimas décadas, Léa mostra-se frustrada pela disparidade que ainda se verifica entre os dois géneros: “Na minha opinião, ainda não alcançámos o patamar que merecemos. Se o Brasil é tido como um dos países onde o futebol é rei, não justifica que as nossas meninas tenham de sair para outros países para se conseguirem revelar. Falta vontade política e desportiva para que o futebol feminino chegue ao mesmo patamar do masculino. Há jogadores a receberem milhões todos os meses e as raparigas têm de assegurar o seu próprio transporte, de comprar equipamentos. Acho isso humilhante. Nós, mulheres, merecemos ser destacadas a nível mundial como jogadoras, árbitras, treinadoras. A minha luta é dar visibilidade real às meninas que se querem inserir no futebol”.
Esta sexta-feira tem início o Campeonato do Mundo de futebol feminino, que se disputará até ao dia 7 de Julho na França. Apesar de a selecção nacional não ter conseguido garantir o apuramento, o nosso país estará representado, justamente, no sector da arbitragem: Sandra Bastos será a primeira árbitra portuguesa na principal competição internacional, acompanhada por Tiago Martins nas funções de videoárbitro.