Gémeas geneticamente editadas podem ter esperança de vida reduzida
Numa análise a uma base de dados com mais de 400 mil pessoas concluiu-se que os indivíduos que têm duas cópias do gene CCR5 com mutação vivem menos tempo.
Passaram mais de seis meses desde o anúncio do cientista chinês que chocou o mundo ao confirmar que tinha editado geneticamente duas gémeas nascidas no final do ano passado. He Jiankui terá editado um gene nos bebés que, quando está naturalmente mutado, confere a vantagem de uma resistência à infecção por VIH. Os receios de outro tipo de consequências desta edição genética considerada “irresponsável” surgiram logo na altura. Agora, um artigo publicado da revista Nature Medicine sugere que as pessoas que nascem com esta mutação (de forma natural) têm menos 20% de probabilidades de chegar aos 76 anos.
Xinzhu Wei, do Departamento de Biologia Integrada e Estatística na Universidade de Califórnia (EUA), e Rasmus Nielsen, do Centro de GeoGenética da Universidade de Copenhaga (Dinamarca), assinam o artigo na Nature Medicina que permite tirar algumas novas conclusões sobre o papel da mutação no gene CCR5. Já se sabia que os europeus com esta alteração genética (a mutação é praticamente inexistente na Ásia) eram resistentes à infecção por VIH. Foi por isso que o cientista chinês He Jiankui decidiu – alegadamente, com a melhor das intenções e, muito provavelmente, em busca da fama mundial – editar geneticamente embriões para que nascessem com essa “vantagem”. Em Novembro, anunciou durante uma conferência mundial que tinham já nascido duas gémeas, Lulu e Nana, geneticamente editadas e, uns dias mais tarde, acrescentou que existiria uma outra gravidez para um terceiro bebé editado (sobre o qual nunca mais ouvimos falar). O mundo condenou o cientista chinês pela irresponsabilidade de avançar sem que fosse possível perceber quais seriam as reais consequências.
O custo do benefício
Pouco a pouco, e sem que se saiba mais pormenores sobre a arriscada experiência de He Jiankui, sobre o paradeiro do cientista ou dos bebés, há investigadores que tentam perceber quais as possíveis implicações desta manipulação. O artigo publicado por Xinzhu Wei e Rasmus Nielsen leva a concluir que os indivíduos com esta mutação têm uma esperança de vida reduzida em 20%. “Os resultados destacam a necessidade de entender melhor como as consequências não intencionais da introdução de mutações em humanos podem afectar a saúde”, sublinha o resumo da Nature sobre o trabalho. “O custo da resistência ao VIH pode ser uma maior susceptibilidade a outras doenças, e talvez mais comuns”, concluem os autores no artigo.
Os investigadores analisaram as informações sobre o genótipo e sobre o óbito de 409 mil indivíduos no Reino Unido, que se encontram na base de dados Biobank. Os resultados mostram que os indivíduos que têm as duas cópias do gene mutado têm cerca de 20% menos probabilidade de chegar aos 76 anos de vida, quando comparados com os que não têm nenhuma ou só têm uma cópia do gene com mutação. O trabalho também permitiu perceber que o número de indivíduos com esta mutação nas duas cópias do gene é inferior ao esperado. Assim, no Reino Unido cerca de 10% dos indivíduos têm uma cópia com mutação mas apenas 1% terão as duas cópias alteradas. A amostra do estudo é significativa mas tem algumas limitações. Por um lado, os registos usados só dizem respeito a pessoas a partir dos 41 anos, deixando de fora todos os que morreram ou adoeceram antes disso. Por outro lado, é uma amostra geograficamente circunscrita ficando em aberto se os mesmos resultados podem ser encontrados noutras populações.
As aparentes vantagens
Estudos anteriores já tinham sugerido que as pessoas com esta mutação podiam ser mais vulneráveis a infecções como a gripe ou a febre do vírus do Nilo. Em Fevereiro deste ano também foi publicado um artigo que referia que a manipulação genética que He Jiankui reclama ter feito a pelo menos três bebés poderá ter algum impacto no desenvolvimento do cérebro das crianças “editadas”. Esta possibilidade foi avançada por Alcino Silva, um conceituado neurocientista português que dirige um laboratório na Universidade de Califórnia, nos EUA.
Nessa altura, recorda a notícia publicada no site da Nature esta semana, o investigador português revelou que o “bloqueio” do gene CCR5 parecia ajudar as pessoas a recuperar mais rapidamente de um acidente vascular cerebral e também havia sinais, em experiências em ratinhos, de melhoria das capacidades de memória e aprendizagem. Assim, “silenciar” o CCR5 – como fez He Jiankui para que os bebés fossem resistentes à infecção por VIH – teria outros possíveis efeitos “secundários”, entre os quais esta eventual melhoria das capacidades.
À primeira vista, este “efeito secundário” parece ser positivo, mas Alcino Silva avisou desde logo que esta aparente “vantagem” também poderia trazer problemas, uma vez que, na prática, ao desligar este gene estamos a fazer algo que pode ser comparado a tirar os travões de um carro. “O carro vai andar muito mais depressa”, admite, notando que, no entanto, os riscos de danos também são maiores. Ao mexer num só gene podemos mexer com muitas outras coisas. Citado pela Nature, o neurocientista português conclui, em jeito de aviso, que “a evolução fez um trabalho árduo para nos dar os genes de que precisamos”.