Europa: a cruz de May, tal como foi de Thatcher

May sai de cena com lágrimas nos olhos. Compreende-se. Atribuiu-se a si própria a missão de cumprir o “Brexit”. Foi traída pelo seu próprio partido. Desistiu hoje. Thatcher também chorou quando teve a mesma sorte. O destino do Reino Unido continua em aberto.

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Theresa May em lágrimas durante o anúncio da decisão Reuters/TOBY MELVILLE
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Ontem, os britânicos foram às urnas votar numa eleição que, há pouco mais de um mês, ninguém admitia que ainda pudesse acontecer. Aconteceu porque o Governo de Theresa May e o Parlamento britânico não conseguiram resolver o dilema do “Brexit”. Não se conhecem ainda os resultados – só podem ser anunciados oficialmente no domingo à noite, quando encerrarem todas as mesas de voto na União Europeia.

As sondagens dos últimos dias eram absolutamente catastróficas para os Conservadores e surpreendentes quanto aos outros partidos, traduzindo o profundo descontentamento dos britânicos em relação à sua classe política e ao caos que conseguiu criar em torno da saída do Reino Unido. Os tories corriam o risco de ficar em quinto lugar, abaixo dos Verdes, com Nigel Farrage a vencer à vontade, os liberais-democratas a saírem do deserto em que ficaram desde que aceitaram coligar-se com os Conservadores em 2010, afirmando-se como o partido pró-europeu sem meias palavras ou segundas intenções e ultrapassando o Labour, enredado nas suas próprias contradições entre um líder que quer o “Brexit” e uma maioria de militantes que não quer.

Theresa May não tinha outra saída senão anunciar a demissão. A sua teimosia, que chegou a ser uma qualidade, transformou-se numa inutilidade. Teimar para quê? Para levar pela quarta vez o acordo que negociou com a União Europeia ao Parlamento e vê-lo de novo chumbado? Para alterar esse acordo com algumas concessões ao Labour, acicatando os deputados do seu próprio partido que querem uma saída hard? O destino da sua quarta tentativa ficou traçado quando o Labour abandonou as negociações que ela própria tinha iniciado para encontrar um terreno comum. O adiamento da data de saída para 31 de Outubro, as pressões cruzadas no sentido de um “clear cut” sem acordo, uma nova consulta popular reivindicada nas ruas de Londres por um milhão de pessoas ou ainda uma petição ao Parlamento para revogar o Artigo 50º que somou quase seis milhões de assinaturas, tiraram a May qualquer margem de manobra. O problema irlandês manteve-se tão irresolúvel como sempre foi.

David Cameron convocou o referendo para “calar” a ala antieuropeia do seu partido. May definiu um conjunto de “linhas vermelhas” para a negociação com idêntico objectivo, que a amarraram a uma negociação “impossível”. Não ganhou nada com isso. A ala mais radical dos tories quer, em primeiro lugar, a sua cabeça. Acaba de obtê-la. A pergunta é: para quê?

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Cristina Sampaio

May disse que sai da liderança do partido a 7 de Junho, para dar tempo a que os Conservadores escolham o seu ou a sua sucessora. Há alguns perfis mais moderados na lista de potenciais candidatos, mas não terão grandes hipóteses de vencer a corrida. Os que defenderam, na campanha para o refendo de 2016, uma saída só com vantagens e sem nenhum custo, os que anunciaram que, em breve, outros países europeus seguiriam o exemplo de “libertação” das Ilhas Britânicas, os que prometeram o regresso (impossível) a um passado imperial e glorioso, ou centenas de milhões de libras para o NHS com dinheiro que já não iria para Bruxelas, continuam a ter mais hipótese de vencer a corrida para a sucessão.

Boris Johnson é o favorito. É um brexiteer capaz de qualquer reviravolta. Há sempre a possibilidade de renegociar, não o acordo de saída, mas a declaração política que o acompanha e que define em traços largos as futuras relações entre a União e as Ilhas. Mas a demissão de Theresa May também aumenta a possibilidade de uma saída sem acordo – um cenário que, do lado de cá da Mancha, ninguém quer.

Theresa May, que talvez mereça o título de “segunda dama-de-ferro”, não conteve a emoção e as lágrimas quando anunciou que desistia da missão que se atribuiu a si própria nos últimos três anos e pela qual se bateu enquanto pode. Lágrimas de frustração. Diferentes, talvez, das que chorou a primeira “dama-de-ferro” quando, em 1991, se sentiu igualmente traída pelo seu partido, que a forçou a demitir-se sem contemplações. As duas líderes britânicas foram protagonistas da mesma maldição que persegue o Partido Conservador e que se chama “Europa”.

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