Um mar de ratos no ecrã
A Plague Tale: Innocence não quer poupar o jogador, começando desde cedo a pintar um quadro negro para a dupla de protagonistas.
A Plague Tale: Innocence, desenvolvido pela Asobo Studio, leva-nos até França, arrancando em 1348 e precisando de dezassete capítulos para contar uma história de fraternidade, sobrevivência e persistência. No final fica a sensação de uma jornada emocional que namora as várias manifestações do pútrido.
Durante a maioria da aventura controlamos Amicia de Rune, uma jovem que praticamente desde os minutos iniciais lida com a perda e com a dor. O argumento do jogo elege-a responsável por cuidar de Hugo, o seu irmão mais novo. Hugo, no entanto, está doente, factor decisivo para estes capítulos serem menos uma viagem de ócio e mais uma prova contra o tempo.
Os dois irmãos não estão sempre juntos durante a campanha. Contudo, o cômputo geral do título vive para esta dinâmica. Tentar salvar Hugo seria uma tarefa hercúlea apenas pela viagem, mas A Plague Tale: Innocence é uma estadia muito pior do que isso. França está envolta na Guerra dos Cem Anos e assolada pela peste negra. Tudo o que os irmãos de Rune vêem é tragédia, terror, desalento, com alguns laivos de esperança, os suficientes para que continuem a caminhar e a procurar.
Todas estas dificuldades alimentam não só o sentimento de união e de superação, mas também servem de vigas para os processos da jogabilidade. Jogo na terceira pessoa, podemos dar ordens ao nosso companheiro de viagem para avançar até determinado local no cenário ou para ficar imóvel. Além destas interacções, a relação dos dois denota também a teimosia e a irreverência de Hugo, tanto em respostas que dá à irmã, como em alguns dos seus comportamentos.
O cerne da jogabilidade de A Plague Tale: Innocence está inserido no género da acção furtiva, misturando ocasionalmente alguns puzzles dependentes dos cenários ou da grande ameaça que define a obra: ratos. Não são dezenas nem centenas de ratos, mas sim milhares que inundam a obra em determinados trechos dos cenários e que nos obrigam a usar a massa cinzenta para os ultrapassar – estas criaturas devoram o que está no seu caminho, incluindo os irmãos.
Amicia conta com uma fisga durante esta travessia por cenários que ocasionalmente parecem ter saído da mente de Dante. Como não há acção na tradicional acepção da palavra, a protagonista pode atingir os inimigos à distância, tal como seria de esperar. Pode também acertar em partes-chave dos cenários e dos bosses, por exemplo, enfraquecendo-lhes os equipamentos. É uma obra que precisa da destreza do jogador e que tenta recompensá-la com precisão.
Curiosamente, a Asobo Studio tenta também assegurar que os jogadores passam em revista todos os recantos dos cenários, dotando a sua obra com um sistema intrinsecamente dependente dos recursos espalhados pelos mapas. Depois de reunirem as ferramentas, os materiais e de encontrarem uma banca de trabalho, podem melhorar a própria fisga, e também as munições e o equipamento. Há munições que perfuram o metal, outras que se incendeiam, e até itens que depois de criados servem de isco para atrair e guiar os ratos. Pode parecer uma trivialidade, mas perceberão que esta manipulação dos roedores é também um puzzle activo.
Os problemas com a jogabilidade chegam quando percebemos que estar tão dependentes da pontaria tem os seus dissabores, como o final de linha sempre que somos apanhados e a consequente repetição da mesma animação. Há inimigos que têm comportamentos erráticos, ou seja, quando se aproximam da nossa posição, torna-se complicado acertar-lhes. Compreende-se que isto nos force a sermos melhores no campo furtivo, mas também aí há algumas fraquezas.
Somos perseguidos por membros da Inquisição que tentam apanhar Hugo. É dos soldados que temos que tentar escapar sem sermos apanhados, porém, sente-se que a sua inteligência nem sempre é a mais astuta, ficando momentaneamente confusa quando os protagonistas estão na sua linha de visão ou avistando-nos a uma distância pouco credível. Os comandos que podemos dar a Hugo sofrem do mesmo mal.
A insolência de Hugo, ainda que sirva perfeitamente o propósito de aprofundar a caracterização da personagem, não resulta tão bem quando o jogador está tenso. Na prática, Hugo tem o dom de apenas com uma tirada conseguir irritar tanto a sua irmã quanto quem segura o comando. Nestes momentos, A Plague Tale: Innocence pode ser descrito como um excelente despoletador de olhos revirados, fictícios e reais.
Não esquecendo estes segmentos menos conseguidos, o que fica é uma aventura vivida no limite das forças e uma obra que será mencionada como “o jogo dos ratos”. A forma como as criaturas entram nos cenários, circundam as personagens como um mar negro com olhos é perturbador – tanto que chegam a prejudicar a forma como pensamos nos puzzles. O ecrã fica preenchido por pares de olhos brilhantes enquanto as colunas de som complementam o nojo e o desassossego com os agudos.
Os ratos de A Plague Tale: Innocence têm medo da luz, escondem-se e desimpedem o caminho. Logo, é fácil perceber que a manipulação destes focos é crucial para passar para os cenários seguintes. Mais: ocasionalmente o título junta estas duas ameaças, os ratos e os soldados, o que leva o jogador a ter, por exemplo, que fazer os ratos devorarem os soldados. E se isto não é um indicativo inequívoco do quão violento o jogo pode ser, há cenas em que os puzzles misturam também animais vivos. O resultado é exactamente aquele em que estão a pensar.
Horas e horas depois, os trechos do jogo com estas criaturas não perdem força nem impacto, até porque os roedores vão formando novas formações. Tecnicamente, é um trabalho soberbo: o sombrio destas cenas, o bailar dos sons com as ameaças visuais, o choque entre o preto e o branco, os efeitos das frágeis chamas que nos separam de uma morte dolorosa e certa.
No campo da sonoplastia, a banda sonora faz mais do que os mínimos para manter vivo este dinamismo, dando aos locais e também às acções um embalo adequado. A falha mais gritante está na vocalização em inglês. A produtora tomou a decisão de dar às personagens um sotaque para relembrar que a obra decorre em França. O problema é que o resultado é quase uma caricatura, chegando mesmo a fazer mais pela distracção do que pela imersão. Felizmente, é um parâmetro que pode ser alterado nas definições.
A Plague Tale: Innocence é um sucesso onde tinha que o ser, ou seja, a contar uma história de sobrevivência e de esperança movimentada pelo poder da união. Tem várias falhas, mas raramente alcançam o núcleo, tal como as memórias que fabrica. É um jogo cru, que não se esconde na hora de ilustrar o quão rente ao solo pode ser uma viagem de alguém que foge a meio mundo enquanto lida com a outra metade, uma metade composta por ratos.