“Roubo” do “arroz do povo” leva à demissão de dois ministros na Guiné-Bissau
Toneladas de arroz de ajuda humanitária chinesa foram desviadas pelo ministro da Agricultura e por um conselheiro presidencial, segundo a PJ guineense. O caso levou o primeiro-ministro a demitir dois ministros nesta quinta-feira.
O Governo da Guiné-Bissau começou esta quinta-feira a distribuir toneladas de arroz de ajuda humanitária chinesa à população que a Polícia Judiciária (PJ) guineense recuperou numa rusga a uma fazenda do ministro da Agricultura, Nicolau dos Santos, e a armazéns da empresa Cuba Lda., propriedade de Botche Candé, ex-ministro do Interior e conselheiro especial do Presidente José Mário Vaz.
O caso, que levou a PJ a emitir um mandado de detenção do ministro da Agricultura, não executado porque a segurança do governante impediu os agentes da polícia de a cumprirem, arrasta-se desde Abril e esta quinta-feira teve consequências políticas: o ministro da Agricultura e o ministro do Interior, Edmundo Mendes, foram demitidos pelo primeiro-ministro, Aristides Gomes.
As 136,5 toneladas faziam parte de uma doação de 2638 toneladas de arroz entregue ao Governo guineense a 26 de Janeiro e foram recuperadas no âmbito de uma operação da PJ denominada Arroz do Povo que deteve três pessoas e incluiu um mandado de detenção do próprio ministro da Agricultura, que não foi concretizado porque os membros de segurança de Nicolau dos Santos o impediram.
A operação desencadeou uma guerra entre a PJ e o Ministério Público (MP) da Guiné-Bissau, que ordenou a devolução das 800 sacas de 50 quilos de arroz recuperados na fazenda de Nicolau dos Santos, instaurando processos contra os agentes envolvidos na busca e apreensão por terem excedido o âmbito do mandado emitido.
Ordem que a directora da PJ, Filomena Lopes, se recusou a cumprir e que motivou até uma carta do sindicato dos magistrados do MP ao Presidente da República a pedir a demissão do Procurador-geral, Bacari Biai, por não reunir condições para continuar a exercer o cargo.
O próprio primeiro-ministro, Aristides Gomes, envolveu-se no processo e classificou a operação da PJ como “um acontecimento triste”, porque um dos armazéns onde o arroz estava guardado para posterior distribuição “foi violado com a presença da polícia”.
Ao longo desta semana, no entanto, a situação adensou-se e o problema do arroz tornou-se bicudo para o governo em funções – mais de dois meses depois das eleições, o Presidente ainda não chamou o líder do partido mais votado para formar um novo executivo –, a tal ponto que tanto o ministro da Agricultura como o ministro do Interior, Edmundo Mendes, foram demitidos.
A notícia foi confirmada ao PÚBLICO pelo jornalista António Aly Silva (do blog de actualidade política guineense Ditadura de Consenso), que enviou ao PÚBLICO cópia das páginas do texto que Aristides Gomes apresentou ao Presidente José Mário Vaz a exonerar os dois membros do seu Governo.
O ex-candidato presidencial Nuno Nabiam, que há cinco anos perdeu na segunda volta para José Mário Vaz, não tem dúvidas em considerar que “isto é um roubo à população”, acrescentando que “não foi uma boa atitude por parte do Presidente e dos ministros que estão envolvidos nesse processo”.
Confrontado pelo PÚBLICO com essa notícia da demissão dos ministros, Nabiam, que é líder da nova formação política Assembleia do Povo Unido – Partido Democrático da Guiné-Bissau (APU-PDGB), que conseguiu eleger cinco deputados nas eleições de 10 de Março, afirmou que “o primeiro-ministro tem toda a razão de o fazer”.
É “um acto flagrante, foi apanhado arroz no armazém de um dos ministros e o outro ministro mandou devolver o arroz apreendido pela PJ de uma forma anormal, o que também não é admissível”. Nuno Nabiam considera que esta guerra entre a PJ e o MP “mostra a fragilidade” da justiça na Guiné-Bissau.
Apesar de haver fotos de José Mário Vaz ladeado pelo embaixador chinês na Guiné-Bissau, Jin Hong Jun, e pelo ministro da Agricultura, posando com sacas de arroz de 50 quilos, o chefe de Estado negou na passada sexta-feira qualquer envolvimento no processo: “O Presidente não recebeu nem participou na distribuição daquele arroz. O assunto está reservado ao primeiro-ministro e ao seu ministro da tutela”.
“Há tantos conflitos na Guiné-Bissau, até o conflito entre MP e PJ. Eu espero que para esse assunto também seja encontrada uma solução e que cheguem a um entendimento e ultrapassem este problema de crispação na praça pública, que é mais triste ainda quando pegamos em assuntos do poder judicial para fazermos julgamento na praça pública”, referiu ainda José Mário Vaz, citado pela Lusa.
Para Nuno Nabiam, este caso “mancha” o chefe de Estado, porque o envolve directamente. “O Presidente tem quatro contentores de arroz no palácio e eu pergunto para quê? Se é um donativo, para que é que o Presidente tem quatro contentores no quintal do palácio?”, questiona o líder da APU.
“A população acabou de compreender que este Presidente não está a trabalhar para o povo”, afirma Nabiam, porque com a população carente, com pouco ou quase nada para comer, o chefe de Estado tem arroz doado guardado no palácio. “Segundo dizem, a maior parte desse arroz já não dá para comer”, por ter, entretanto, ficado estragada com o tempo.
No entanto, o “arroz presidencial” pode não ser do lote entregue pelos chineses em Janeiro, mas de uma outra doação humanitária feita pelo Governo da Índia em Setembro de 2018 e entregue a José Mário Vaz pelo embaixador indiano em Bissau, Rajeer Kumak.
Uma tonelada de arroz em quatro contentores que, refere Aly Silva no seu blog, estavam reservadas para distribuir na campanha eleitoral para a reeleição de José Mário Vaz se as eleições se tivessem realizado em 2018 como inicialmente previsto. O seu adiamento (as presidenciais só devem realizar-se a 3 de Novembro deste ano, se o chefe de Estado aceitar a sugestão da Comissão Nacional de Eleições) pode ter levado a que o arroz acabasse por se estragar.