Noventa e nove por cento?
Bárbara Reis dá a sua opinião sobre o cartoon de António e sobre o governo de Israel, que em sua opinião “há 70 anos que ofende o mundo”. Permita-me que em nome da liberdade de expressão também dê a minha opinião.
No seu artigo de opinião de 3 de Maio, a jornalista Bárbara Reis afirma que 99% do mundo concorda com o cartoon de António publicado pelo jornal Expresso e que ao contrário do New York Times, que mandou retirar o cartoon das suas páginas, “em Portugal há liberdade de expressão e pensamento”.
Não sei onde foi Bárbara Reis buscar essa unanimidade reconfortante, mas em minha opinião a jornalista erra o alvo porque o que está em causa não é a liberdade de expressão. Que eu saiba, ninguém em Portugal, a começar por mim própria, exigiu a retirada do cartoon e também não subscrevo necessariamente a sua retirada do Times. A publicação faz efectivamente parte da liberdade de expressão. Mas o protesto, a contestação, a polémica e a discussão decorrentes também fazem parte da liberdade de expressão e aí talvez os hipotéticos 99% que concordam com este ou outro cartoon do mesmo tipo já não a defendam tão entusiasticamente...
Bárbara Reis dá a sua opinião sobre o cartoon de António e sobre o governo de Israel que, em sua opinião, “há 70 anos que ofende o mundo”. Permita-me que em nome da liberdade de expressão também dê a minha opinião: o cartoon de António é ofensivo e objectivamente anti-semita. Não estou a falar de intenções, estou a falar de alusões concretas, a primeira das quais é a utilização de símbolos judaicos como a Estrela de David e a Kipá num cartoon que se pretende exclusivamente político. Num eventual cartoon de crítica política com a caricatura de Theresa May, de Emmanuel Macron, ou de Marcelo Rebelo de Sousa, seriam utilizados os símbolos cristãos? Tenho sérias dúvidas... e a verdade é que nem o governo de Netanyahu, nem qualquer outro governo de Israel representa o mundo judaico na sua imensa diversidade politica, ideológica e religiosa. Quer se queira, quer não, o que o cartoon sugere é uma responsabilidade global judaica na política do Estado de Israel, seja deste governo ou de qualquer outro.
Mas há um outro aspecto relevante. O cartoon representa Donald Trump, cego, levado pela trela de Netanyahu, supostamente ao “serviço dos interesses” deste último. Ora, para quem acompanha a política americana é óbvio que esta tem objectivos próprios, sempre os teve e continua a ter, nomeadamente no próprio Médio Oriente. Mas, conscientemente ou não, o cartoon recorre a um cliché anti-semita recorrente: o de que os judeus controlam ou tentam controlar o mundo inocente dos peace-loving states. Não importa que os judeus não cheguem a 15 milhões no mundo porque, de qualquer forma, as teorias da conspiração nada têm a ver com a realidade e para muito boa gente os “Sábios de Sião” continuam a tentar manipular o mundo...
Finalmente, e isto nada tem a ver com o cartoon, Bárbara Reis afirma que “há 70 anos que o governo de Israel ofende o mundo”. Ou seja, o que está em causa para a jornalista não são os dez anos de governo de Netanyahu, mas a própria existência do Estado de Israel que faz agora precisamente 71 anos. Que importam as guerras movidas contra Israel desde a sua fundação, em 1948? Que importa a construção de um país desenvolvido e democrático onde a liberdade de expressão, sim, a liberdade de expressão, é um exemplo para muitos dos peace-loving states e no qual a critica pública se exerce de forma livre e acirrada? Que importa que Israel tenha sido desde o seu início e até hoje o refúgio de todos os perseguidos do anti-semitismo, da intolerância e da discriminação? Bárbara Reis prefere apoiar-se nas sucessivas, incontáveis e desproporcionadas resoluções da ONU, a maioria das quais propostas e apoiadas por peace-loving states que não hesitam frequentemente em chacinar as suas próprias populações.
A crítica à política dos governos israelitas é tão legítima quanto o são as críticas à política de Portugal, França, EUA, Irão e por aí fora. Mas no seu texto, Bárbara Reis confunde crítica política com anti-sionismo. Não saberá que “sionismo” foi desde o século XIX e por definição a aspiração judaica a um lar onde finalmente os judeus pudessem viver livres e donos do seu próprio destino? Ou prefere adoptar como sua a que define sionismo como “uma forma de racismo e discriminação racial”, votada em 1975, em plena Guerra Fria, pela Assembleia Geral das Nações Unidas por proposta da então União Soviética e entretanto revogada em 1991?
Bárbara Reis afirma que o “cartoonista António ganhou na corrida de fundo contra o politicamente correcto”. Mas, na verdade, hoje o politicamente correcto é o ataque sistemático a Israel. É esse o “bom” lado, o lado das boas consciências. Felizmente não chega aos 99%...
A realidade nunca é tão bela como o sonho, e a crítica não só é legítima como salutar. Eu própria não me coíbo de a fazer e não sou refém das acções de Israel, tal como nenhum judeu o é. Lamento dizer, mas são os anti-semitas que nos tornam reféns...