Um 25 de Abril com Fausto e um 26 com Procol Harum
De Fausto Bordalo Dias aos Procol Harum, houve música popular com grandiosidade clássica e com inegável sabor a liberdade.
Se há coisa que a simples menção do 25 de Abril traz de imediato à memória é a liberdade, ou a falta dela. O que não se podia fazer. O que se fez depois. As proibições. Os excessos. A vida sem chama. A vida incandescente. Ainda a caminho do meio século, que já não tarda (passa depressa, o tempo), a data encalhou este ano no número 45; que, não sendo propriamente redondo, levou os municípios a aprimorarem as celebrações. Uns à procura do futuro (como o Seixal), outros a valorizar memórias (Grândola, Setúbal, Santarém). Mas não é deles, apesar de merecerem, que fala esta crónica, é de Lisboa. E de Fausto.
No final de uma tarde de chuva intensa, varrida a vento, a encharcar tudo e todos, a Praça do Comércio (que desde que ganhou uma música com o seu nome, por mérito de Júlio Pereira, passou também a ter um som associado) já lá tinha montados palco, ecrãs e cadeiras para receber um espectáculo que num dia sem chuva teria enchido a praça: Música e Revolução, com Fausto Bordalo Dias, os seus músicos e uma orquestra dirigida pelo maestro Cesário Costa, num alinhamento com arranjos originais de Filipe Raposo. E, tratando-se de Fausto, seria de esperar (como se confirmou) que o alinhamento proposto tivesse um fio condutor que não desmerecesse os que têm pautado os seus concertos e discos.
O que fez Fausto? Não deu primazia aos seus discos que mais reflectem o 25 de Abril (até por terem sido editados em 1974 e 1975, Pró Que Der e Vier e Um Beco Com Saída) mas sim aos que mais reflectem sobre o 25 de Abril: O Despertar dos Alquimistas (1985) e A Ópera Mágica do Cantor Maldito (2003). Para os que insistem em tratá-lo com se fosse homem-de-um-disco-só, acorrentando-o à incontestável excelência de Por Este Rio Acima (1982), a experiência da Praça do Comércio na noite de 24 de Abril foi deveras gratificante. Primeiro com o som, ainda em off, do “arrombamento” na introdução de O redil (que abre a Ópera), depois com a belíssima peça orquestral que é A memória dos dias, que nos seus 12 minutos nos devolve o sobressalto da revolução que se esvaía (“Acordaste em sobressalto/ do teu sonho meio ferido/ (…)/ soçobrado na ideia/ mais ou menos dolorosa/ que te negavam medonhos/ o teu plano cor-de-rosa”). Se já soava superlativa no disco, com Mário Laginha ao piano mais sopros, cordas, metais e coros, ganhou ali, com a orquestra, uma respiração grandiosa.
E depois a viagem seguiu certeira, recuando aos primórdios (Daqui, desta Lisboa), pesando a passagem dos anos (Atrás dos tempos outros tempos vêm), revendo as aventuras e desventuras por terras e mares (Lembra-me um sonho lindo, Na ponta do cabo, Aproximação à terra), cantando o enlevo da Europa (Foi por ela, Ali está a cidade, Lusitana). Parando amiúde na Ópera ou nos Alquimistas. Quem reduz Fausto a um só disco, corra a ouvir os outros. É surpreendente como muito do que ali está soa tanto a novo, seja num antigo gira-discos ou numa praça a recompor-se da chuva para uma noite memorável.
Um dia depois, na noite de 26, os britânicos Procol Harum. Não ao ar livre mas no Coliseu de Lisboa (e 27 no do Porto). O que têm eles a ver com o 25 de Abril? Alguma coisa. É que eles foram o primeiro grupo rock de peso (A whiter shade of pale, que os celebrizou, tem mais de 100 milhões de visualizações no YouTube) a actuar numa sala portuguesa de grandes dimensões um ano antes da queda da ditadura. Recebeu-os o Pavilhão de Cascais, o mesmo que em 1971 e 1972 já se enchera (e exultara) com os dois primeiros festivais de jazz.
Foi nos dias 24 e 25 de Fevereiro de 1973, sábado e domingo, sendo que no primeiro dia (eu estava lá, como milhares de outros espectadores ansiosos) estivemos quase à beira de um tumulto. O espectáculo nunca mais começava, já havia gente a penetrar furtivamente pelo telhado, e só depois da meia-noite os Procol Harum entraram em palco, recebidos em euforia. No blogue Ié-Ié conta-se o que sucedeu (fonte: o baixista): o avião atrasara-se, alguém lhes disse que o concerto tinha sido cancelado e eles, depois de aproveitarem “para beber todas as bebidas que conseguiram a bordo”, foram direitos para o hotel. Até que os organizadores foram buscá-los, em pânico. Tendo em conta esta história rocambolesca, o concerto até correu bastante bem.
Agora, 46 anos passados, quando só Gary Brooker resta do grupo inicial, que também já não era o mesmo que ouvimos em Cascais em 1973 (estavam lá, do início, Brooker e o esplêndido baterista BJ Wilson, que morreu em 1990 após três anos em coma, em consequência de uma overdose), ainda assim ficou do concerto do Coliseu de Lisboa a clara sensação de um grupo rock em boa forma que tira verdadeiro prazer da música, em lugar de se limitar a debitar sons. Outra coincidência? O disco deles que se ouvia em Lisboa no início de 1973 era Procol Harum Live, gravado no Canadá com a Edmonton Symphony Orchestra e os Da Camera Singers. Orquestra e coro. Música popular com grandiosidade clássica. Como Fausto agora em Lisboa. Ambos com inegável sabor a liberdade, essa sensação que nenhum mau vento apagará.
Esta crónica regressa em finais de Maio