Para onde nos conduz a sátira no Cortejo da Queima das Fitas de Coimbra?
É altura de questionar os moldes em que o Cortejo da Queima das Fitas de Coimbra é organizado porque hoje simboliza pouco mais do que um pretexto para o excesso. E não sejamos ingénuos: como o caso do “Alcoholocausto” existirão outros. Calhou este vir para a ribalta.
Despontou, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC), uma polémica em torno do carro alegórico do curso de História, intitulado “Alcoholocausto”, que marcará presença no próximo Cortejo da Queima das Fitas. O escalar da fricção já permitiu que o incidente chegasse a alguns meios de comunicação.
Alguns professores da FLUC, na sequência do alerta dado por alunos, mobilizaram-se no sentido de travar o baptismo pretendido pelos estudantes envolvidos no seu desenvolvimento. Catarina Martins, professora da FLUC e um dos rostos do coro de indignação que se ergueu nas redes sociais, não tardou a dizer “não vale tudo” e “este é um limite que não se pode ultrapassar”. E, convenhamos, trata-se de uma tomada de posição legítima pela evidente referência, que aliás se faz acompanhar pela imagem de um comboio, ao extermínio de minorias étnicas e religiosas.
O Holocausto, crime contra a humanidade perpetrado pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial, correspondeu ao culminar da hecatombe que radicou em preceitos de ódio, segregação e limpeza étnica. Para além do genocídio sem precedentes, o fenómeno representa a indignidade a que milhões de indivíduos foram sujeitos, transportados como gado, submetidos a testes químicos, a infames práticas de trabalho forçado, à desnutrição. Em suma, a “solução final” representa a ignomínia do extremismo.
A comissão organizadora do carro, confrontada com os apelos de alguns membros do corpo docente e de representantes do núcleo de estudantes da FLUC, não tardou a emitir um comunicado onde justificava as suas escolhas. Conhecedora da história europeia do séc. XX, reiterou que não teve como “objectivo enaltecer aquilo que foi o Holocausto, muito menos denegrir, difamar, caluniar ou desmentir o sucedido”. Segundo a mesma, o objectivo é satirizar o estado caótico que se abateu sobre o ensino superior, o próprio Cortejo, desde que se converteu ao “despejo de cerveja” e ao “fácil acesso a bebidas alcoólicas”. Os responsáveis acrescentam ainda que o carro não se esgota no seu nome e que ele integra “variadas vertentes de crítica”. Acerca deste último ponto, admito, teremos de aguardar até à divulgação pública do seu formato e conteúdo.
Contudo, apesar de conceder o benefício da dúvida acerca do produto final da comissão, creio que houve falta de bom senso no método adoptado para criticar e debater um assunto tão sensível como este. Independentemente do actual estado do ensino superior, das visíveis e invisíveis carências e debilidades que o acompanham, compará-lo ao indescritível sofrimento das vítimas do Holocausto é um insulto para a sua memória. Bem como para os que sobreviveram e seus descendentes. Além do mais, ao tecer-se uma crítica à cultura do álcool instalada em Coimbra que atinge o seu expoente máximo no Cortejo da Queima das Fitas, parece-me, no mínimo, caricato que o carro “Alcoholocausto” participe activamente nas festividades. A menos que a comissão se proponha a guarnecer comida, água, açúcar e kits de primeiros socorros à hoste de corpos ébrios que vai desfilar por Coimbra fora.
No meio da controvérsia, os novos fitados de História alegam estar a ser vítimas de censura numa conjuntura em que se celebram datas que inspiram a conduta democrática, nomeadamente a crise académica de 17 de Abril de 1969 e a revolução dos cravos de 25 de Abril de 1974. É risível. A comissão foi devidamente notificada e dela solicitou-se apenas a responsabilidade que o futuro ofício dos seus membros – historiadores e professores – exige. Esgrimiram-se argumentos, de parte a parte, mas por força das circunstâncias os alunos padecem de sustentação credível. E em outros tempos não haveria diálogo, apenas corte.
Se é verdade que o Cortejo da Queima das Fitas, em tempos, incorporava um momento de crítica social, cómica, mas ponderada, hoje observamos o reflexo dos efeitos da praxe. Essa forma de arregimentar os estudantes nas fileiras do impropério desbarato, da boçalidade bucólica e do alcoolismo desenfreado. Cria fortes amizades e dinâmicas grupais? Sim. Mas não me parece que o custo deva ser, entre outros, a incompreensão de que questões como o Holocausto não podem ser tratadas desta forma leviana.
É altura de questionar os moldes em que esta festa é organizada porque hoje simboliza pouco mais do que um pretexto para o excesso. De folia, desinibição e ebriedade. Também será oportuno reflectir acerca da Comissão Organizadora da Queima das Fitas e da sua conivência com a ausência de ética, permitindo que surjam situações deste tipo, impunemente. E não sejamos ingénuos: como o caso do “Alcoholocausto” existirão outros. Calhou este vir para a ribalta.
Para terminar, não coloco em causa os propósitos dos finalistas que irão integrar o carro de História. Todavia, a reificação da sátira, por via do carro alegórico, peca pela distância entre as intenções de quem satiriza e o significado que ela acarreta. E de boas intenções está o inferno cheio.