Cerco a Trípoli cresce e alimenta-se de divisões na Europa
Ofensiva do general Haftar contra o Governo líbio reconhecido pela ONU já fez 180 mortos e 800 feridos. Itália e França têm interesses divergentes no meio de uma batalha onde se joga o medo das migrações e de uma nova Primavera Árabe.
Oito anos depois da queda e morte de Muammar Kadhafi, a Líbia continua a ser uma manta de retalhos onde os interesses de centenas de grupos, nacionais e estrangeiros, travam qualquer hipótese de uma solução pacífica. E a batalha que está em curso pelo controlo da capital veio complicar ainda mais este cenário. Na noite de terça para quarta-feira, um ataque às portas de Trípoli fez sete mortos, a maioria mulheres, e deixou sem grandes explicações um dos habitantes, Yunes Blis: “Já nem me lembro por que continuamos a lutar.”
Blis e Essam Taha, vizinhos num bairro na zona sul da capital líbia, contaram à agência Reuters como quatro mulheres morreram quando três rockets atingiram uma área residencial no distrito de Abu Salim: “Não tiveram qualquer hipótese”, disse Taha. “Não estamos seguros aqui, e também não podemos sair.”
No dia 4 de Abril, as forças lideradas pelo antigo general Khalifa Haftar, que controlam a zona Leste do país a partir de cidades como Bengasi e Tobruk, lançaram uma ofensiva contra a capital, no outro extremo da Líbia.
Até esta quarta-feira, os combates fizeram pelo menos 180 mortos e 800 feridos.
O objectivo de Haftar é derrubar o Governo de Acordo Nacional, reconhecido pela generalidade dos países ocidentais como o único com legitimidade para liderar a Líbia, e muito apoiado por Itália.
Mas o antigo general de Kadhafi, de 75 anos, apoia um outro Governo líbio, com sede em Tobruk, que conta com a ajuda de países como o Egipto e os Emirados Árabes Unidos, e com a simpatia do Presidente francês, Emmanuel Macron.
O novo “homem-forte"
Para além das antigas rivalidades entre as mais de 140 tribos, que o antigo regime foi conseguindo esconder enquanto o dinheiro do petróleo serviu de calmante, a Líbia transformou-se num puzzle ainda mais complicado a partir de 2011, quando a intervenção da NATO ajudou a derrubar Kadhafi.
Desde então, centenas de milícias armadas, com interesses variados, têm lutado pelas partes da Líbia que mais lhes interessam – uma batalha que alguns analistas anteciparam há oito anos, alertando para a ausência de uma sociedade civil capaz de criar laços nacionais durante o regime de Kadhafi.
O general Haftar e o seu conjunto de milícias, a que chamou Exército Nacional Líbio, dizem que é preciso restaurar a ordem no país, e que isso só é possível aniquilando as milícias islamistas que, por conveniência e não por convicção, têm lutado ao lado do primeiro-ministro, Fayez al-Sarraj, em Trípoli.
“É a narrativa de que todos os inimigos são perigosos extremistas”, disse Anas El Gomati, director do Instituto Sadeq, com sede na capital líbia, num debate no canal Al-Jazira. “E essa narrativa vai ao encontro dos movimentos populistas europeus, em particular em Itália, que instigam o medo de uma suposta invasão de imigrantes e refugiados.”
“É uma simplificação excessiva”, disse à agência Reuters um responsável da diplomacia francesa, citado sob anonimato. “Não se trata de uma situação em que o bonzinho Haftar luta contra os mauzões de Trípoli e Misurata. Também há grupos aliados da Al-Qaeda a combater no outro lado.”
Mas esse medo é também aproveitado pelo principal adversário do general Haftar. Esta quarta-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros italiano, Enzo Moavero Milanesi, disse que não tem nenhuma informação sobre os “800 mil migrantes que estão prontos a fugir da Líbia para a Europa” no caso de a batalha por Trípoli se agravar – um número atirado esta semana pelo primeiro-ministro líbio, Fayez al-Sarraj, e que o ministro italiano diz ser “exorbitante”, preferindo falar em “poucos milhares”.
Para além do petróleo
Num sinal de que os esforços internacionais para mediar uma trégua entre o Governo de Acordo Nacional e o Exército Nacional Líbio estão longe do seu objectivo, o ataque contra Trípoli foi anunciado pouco depois de o general Khalifa Haftar se ter reunido com o secretário-geral da ONU, António Guterres. E os analistas sublinham que as divisões entre tribos, clãs e milícias armadas são alimentadas pelos interesses dos países vizinhos, como o Egipto, Emirados Árabes Unidos ou Qatar, mas também pela França ou Itália.
Os primeiros têm interesse em apoiar um homem-forte como Haftar, visto como um novo Kadhafi pelos seus opositores, e uma melhor aposta para quem quer travar não só o caos actual na Líbia, como também uma possível repetição dos protestos da Primavera Árabe. E para Paris, “Haftar, ou um exército estável em Trípoli, é fundamental para a sua política mais abrangente contra as milícias no Sahel”, diz Ulf Laessing, chefe da delegação da agência Reuters no Norte de África – isso e a defesa dos seus interesses petrolíferos no país.
Ao Governo italiano interessa mais a questão das migrações, para além dos seus interesses no sector do petróleo, ainda maiores do que os dos franceses. Mas Roma parece querer manter as suas opções em aberto.
“Do ponto de vista italiano, a esperança é que alguém ainda vá a tempo de dominar Haftar, que está a tentar pôr todas as partes perante um fait accompli. Mas isso pode não acontecer”, disse Francesco Galietti, director da empresa de consultoria em gestão de risco Policy Sonar, à Al-Jazira.
“Estamos num ponto em que Itália não se pode permitir fazer uma única aposta”, afirmou Galietti.