No restaurante Mil-Homens, a tradição “vem com manual de instruções”
Aberto desde 1967 na aldeia da Portagem, em Marvão, esta casa mantém o receituário familiar há três gerações.
“Não é só comer, vem com manual de instruções”, atira Hélder Pires, ao mostrar-nos a ementa. A maioria das receitas mantém-se “desde o tempo da avó Maria”, sem “qualquer tipo de ajuste ou alteração”. São pratos regionais antigos, com história, e Hélder vai-nos contando uma a uma para sabermos o que escolher.
A casa, instalada na Rua Nova, na Portagem, abriu em 1967. Tinha “uma fila de potes”, onde o avô de Hélder produzia vinho – “Foi um dos primeiros a ter aqui uma produção de vinho da talha em grande escala, salvo erro são 27 unidades, a mais pequena leva 1300 litros” –; uma “mesa corrida” e, do outro lado, uma salsicharia, decorada com sacos de farinha “para dar alguma cor às paredes”.
“Tinham de matar os porcos à noite para deixar [o sangue] a escorrer. No outro dia, começava-se a fazer o desmanche da carne para os enchidos e, nesse entretanto, a minha avó começou a fazer uns pestisquinhos.” Os pratos ganharam tal fama nas redondezas que depressa começaram a chegar encomendas para grupos, baptizados e casamentos.
Uma das iguarias é a sopa de sarapatel, feita com miudezas de borrego, laranja e hortelã. E é sobre ela que Hélder nos fala em primeiro lugar, ainda com a ementa nas mãos. “Como do borrego se aproveitava praticamente tudo, o sarapatel nasceu da necessidade de aproveitar também esta parte da proteína animal.” Foi depois levado para vários pontos do mundo pelos marinheiros portugueses – há versões da receita no Brasil, em Moçambique, Goa. “Na Índia, leva parte da orelha, muito mais especiarias e é muitíssimo picante.”
Já o cação vem numa alhada e há instruções históricas, porque este “era o único peixe que chegava em condições ao interior ainda fresco”. Para a receita de galinha tostada em azeite, Hélder transporta-nos até uma tradição regional: quando um bebé nascia, as famílias matavam a “melhor galinha do galinheiro” para fazer uma canja para mãe. “O resto da família comia as sobras.”
“Alguns estão mais preocupados com os pneus, nós fazemos comida portuguesa à antiga.” Que não lhe venham pedir bitoques, sopas passadas ou pratos instantâneos. “Às vezes, as pessoas chegam e perguntam o que podem ter aqui rápido... Carinho, boa vontade, boa conversa. Tudo o resto, vai demorar o tempo que seja necessário.” Depois da avó Maria, foi a mãe, Palmira, que liderou o restaurante até adoecer. Faleceu no final de Dezembro, uma “ferida ainda muito aberta”. “Era o pilar desta casa”, resume Hélder. “Tudo o que sou, tudo o que sei, foi com ela.”
Hélder nasceu aqui, “nesta casa, nesta vida”. “Sou filho de uma taberna.” Assume-se como “criativo de cozinha”, nunca cozinheiro. “Não sei fazer a receita de ninguém, os ingredientes falam comigo e consigo criar alguns pratos fantásticos com poucos ingredientes.”
E o Mil-Homens que dá nome à casa? “Começa com uma alcunha, que vem do meu tetravô.”. Como era alfaiate, chegava às romarias e festas da raia com “as roupinhas da moda” e “as meninas não [lhe] tiravam os olhos de cima”. Os outros rapazes não achavam piada e “volta que não volta, havia porrada de três em pipa”. Reza a lenda que numa dessas noites, na vizinha aldeia espanhola de La Fontañera, apercebeu-se que a história iria repetir-se. “Chega lá ao balcão, dois copos de tinto de penálti e diz: ‘Como estou agora, nem que venham mil homens’.”