Por que é que o #MeToo e suas variantes são reaccionários e puritanos

O facto de ser crítico do #MeToo não me coloca entre os que desvalorizam a questão do machismo, mas todos olharão para a recusa do #MeToo como desclassificando a preocupação com o machismo, diga o que disser.

Para se ver o estado em que as coisas estão, começa por se considerar que um artigo desta natureza não deveria, ou não poderia, ser escrito por um homem. Logo à cabeça, diga-se o que se disser, a leitura preconceituosa do artigo é moldada, antes de tudo, pelo género de quem o escreve. Há, de imediato, um espontâneo processo de intenção, que dita que, seja o que for que eu escrever, o facto de não concordar com a solução do #MeToo tira valor ao facto de entender que há um problema perverso nas relações homem-mulher nesta sociedade. O facto de ser crítico do #MeToo não me coloca entre os que desvalorizam a questão do machismo, mas todos olharão para a recusa do #MeToo como desclassificando a preocupação com o machismo, diga o que disser. É como um branco a escrever sobre o racismo – como não é negro nem cigano, não sabe do que fala, nem sente “na pele” o racismo.

Um dos aspectos da falência da racionalidade, nos dias de hoje, é a ideia de que o direito à palavra pertence naturalmente à parte mais fraca e de que, num debate público, os homens e mulheres não são julgados pelos argumentos racionais, pelo logos, mas pelo pathos, da experiência vivida e intransmissível por cima do género. Que eu saiba, “no sentir na pele”, a “pele” não pensa, mas sim a cabeça. Este tipo de anátemas e reducionismos no debate público é cada vez mais comum e empobrecem-no muito.

Não tenho dúvidas de que há uma prática estabelecida de abuso das mulheres por parte dos homens, numa cultura machista, e que tal não deve ser menosprezado e deve ser combatido. E não é das mulheres sobre os homens, é dos homens sobre as mulheres. As mulheres são as vítimas de incontáveis actos de abuso, uns mais graves do que outros, mas praticados sempre no âmbito de uma cultura dominantemente machista. Não é um comportamento pontual e conjuntural, está no âmago da cultura da sociedade em que vivemos, dos EUA à Suécia, de França a Portugal.

Se há seta do progresso, ela compreende a desmachização das sociedades contemporâneas, um processo lento, difícil, que deve sempre mais às mulheres do que aos homens. Daí que o arranque do movimento do #MeToo tenha sido fundamental para revelar a extensão do problema, as suas formas mais disfarçadas, e instituir um mecanismo de prevenção pelo medo. Os homens que abusavam têm agora a consciência de que podem pagar um preço bem caro por esse abuso. Isto foi o melhor do movimento inicial do #MeToo. Só que, depois, a coisa descambou.

Hoje, movimentos como o #MeToo e outras variantes mais ou menos radicalizadas, mais ou menos feministas, não são uma resposta, são uma parte do problema, a parte do problema que emigrou de um lado para o outro, da cultura machista para uma nova variante de cultura puritana, socialmente reaccionária. Essa cultura agressiva está muito longe do movimento inicial e gera um terreno muito ambíguo que, no limite, pode sempre criminalizar a sedução, gerar uma gramática das relações afectivas muito rígida e burocrática, criando um extenso rol de regras, que só falta colocar no papel numa espécie de contrato de consentimento, cuja validade pode durar uns segundos, porque o “sim” de há segundos pode dar origem a um “não” a seguir. Ninguém se relaciona afectivamente assim na prática, mas pode ser perseguido assim com a maior facilidade.

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Depois, o #MeToo, hoje, é um movimento claramente hostil à heterossexualidade, outra coisa que também não se pode dizer no pensamento policiado dos dias de hoje. Quem são os maus e em que contexto são eles os maus? Quase sempre, homens numa relação heterossexual. Embora todos saibamos que há abusos em relações homossexuais com a mesma mecânica e quase a mesma forma entre homens e homens e mulheres e mulheres, a grande ofensiva é no contexto heterossexual. Pode dizer-se que tal é natural, devido à prevalência maioritária desse tipo de relações, mas há um julgamento de perigosidade maior sobre as relações heterossexuais do que sobre as relações homossexuais, como se o abuso residisse preferencialmente nas primeiras.

Depois, e isto é um problema crescente, casos graves, mesmo crimes de violação, são tratados do mesmo modo do que comportamentos impróprios ou ambíguos na sua forma. Comportamentos que eram socialmente aceitáveis, nos dois lados, homens e mulheres, ou seja, que não eram “sentidos” como sendo de abuso, hoje são retrospectivamente apontados como sendo abusivos. Este processo gera um efeito de trivialização do abuso, que o torna na acusação mais comum para destruir vidas e carreiras. O facto de, em muitos casos, haver razão nas acusações não pode fazer esquecer a facilidade em acusar sem provas que sejam mais do que impressões, quase sempre a posteriori.

Movimentos radicais, como algumas sequelas feministas do #Me Too, na prática, o que fazem é criminalizar a sexualidade, reduzi-la a um contrato codificado de normas e regras, num movimento que resulta num puritanismo moderno, ou numa subvalorização do sexo cuja relação com o abuso habitual torna impuro. O sexo é o lugar do abuso, a sede do abuso, e só burocratas o podem fazer deitados em cima de um código de costumes. Em teoria, porque nada disto acontece na prática, e nem as mais radicais feministas fazem sexo assim. Dá bons slogans feministas nos cartazes das manifestações, mas são completamente irrealistas. Pelo contrário, acentuam o policiamento de corpos e cabeças, e isso é bem real.

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