Um momento de publicação independente: 24 Estórias Entre Vizinhos

Fanzines, edições de autor, livros de artista — nesta rubrica queremos falar de publicação independente. A artista Ana João Romana apresenta o livro de artista 24 Estórias Entre Vizinhos. O próximo podes ser tu.

Foto
Eduardo Sousa Ribeiro

Apresenta-nos o teu livro.
O livro 24 Estórias Entre Vizinhos surge no âmbito de um projecto realizado entre o Museu Gulbenkian e três centros de dia localizados na sua vizinhança. Eu fui convidada para me juntar a este projecto como a artista que iria materializar uma obra em colaboração com um grupo de seniores, que frequentam os centros de dia, e as mediadoras do museu.

Do que quiseste falar?
24 Estórias foi materializado em dois momentos: uma instalação de estórias no bairro das Avenidas Novas e nos espaços públicos da Fundação Calouste Gulbenkian (que decorreu entre Novembro 2018 e Janeiro de 2019) e uma publicação que inclui essas mesmas estórias, os retratos dos participantes e duplas páginas concebidas por cada um deles.

As estórias foram escritas por mim a partir de uma recolha de memórias dos participantes, memórias estas ligadas ao bairro e à Fundação Calouste Gulbenkian. Eu escolho o termo estórias, em detrimento de histórias, porque as primeiras são narrativas de cunho popular. Vejo-me como uma artista plástica contadora de estórias, trabalho com texto porque, seguindo a ideia de Paul Ricoeur, texto materializa tempo, torna-o passível de ser entendido. A recolha de memórias traz presente a coisa ausente, aqui e agora.

O grande desafio que me foi lançado era trazer este grupo de seniores para dentro da arte contemporânea. Num projecto como este, inserido no que é chamado em artes visuais de social practices, o processo é mais importante do que o objecto final. É uma prática artística que alimenta o sentido de comunidade, os afectos, centrada nas relações mais do que nos objectos, que tem a capacidade de ser transformadora.

Explicando o processo por etapas: a partir de Abril, com o grupo de seniores, analisámos alguns livros de artista que estão no acervo da Biblioteca de Arte da Fundação Gulbenkian, o que os levou a conceber um primeiro livro a partir da escrita e/ou do desenho, como um exercício de aquecimento; na avaliação que os seniores fizeram ao projecto um dos aspectos que teve maior impacto foi a capacidade de analisar uma obra de arte sem ter conhecimentos especializados. Na fase seguinte todos os participantes realizaram uma dupla página com aquilo que gostariam de ver sobre si num livro — este trabalho foi acompanhado por mim e pelas mediadoras do museu em sessões que fizemos nos centros de dia. Durante os meses de Junho e Julho o fotógrafo retratou cada um dos participantes a partir do espaço da Fundação Gulbenkian, nos centros de dia ou no bairro. Em Outubro voltámos a reunir-nos no Museu Gulbenkian e produzimos a tiragem dos 50 livros – imprimimos, cortámos, vincámos, cosemos, colámos, construímos caixas... Para mim este livro é uma cápsula do tempo dedicada às 24 pessoas envolvidas no projecto.

Quem são os autores?
Eu sou artista plástica, docente universitária (criei a disciplina de Livro de Artista na Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha há nove anos), editora, publicadora e coleccionadora de livros de artista.

Também autores do livro 24 Estórias Entre Vizinhos são os seniores da Associação de Auxílio Social de São Sebastião da Pedreira, da Associação para o Desenvolvimento e Apoio Social do Bairro do Rego e do Centro de Dia D. Maria I da Santa Casa Misericórdia de Lisboa, bem como as três assistentes dos centros de dia que se envolveram no projecto. Também mediadoras do Museu Gulbenkian que iniciaram o Entre Vizinhos em 2017 – a Diana Pereira e a Joana Andrade – e que actualmente continuam este projecto educativo noutros formatos. O Eduardo Sousa Ribeiro, fotógrafo dedicado que realizou todos os retratos, e o António Faria, que me ajudou no design gráfico.

Questões técnicas: quais os materiais usados, quantas páginas tem, qual a tiragem e que cores foram utilizadas?
24 Estórias é um livro constituído por 24 fólios, um booklet e um encarte, dentro de uma caixa de cartão canelado castanho. Tem uma tiragem de 50 exemplares.

Onde está à venda e qual o preço?
O livro não está disponível para venda, a tiragem foi distribuída por todos os participantes do projecto Entre Vizinhos e intuições parceiras (ofertas que só foram possíveis com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian).

 O livro está disponível para consulta na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian e foi oferecido a outros museus de arte contemporânea que têm acervos de livros de artista disponíveis nas suas bibliotecas – Museu de Serralves, no Porto, Museu Reina Sofia, em Madrid, Tate Modern, em Londres e MoMA, em Nova Iorque. Esta distribuição é possível porque o livro de artista é uma obra de arte portátil, como dizia o bibliófilo Pina Martins — “Os livros atravessam oceanos e sobem montanhas!”

Foto

Porquê fazer e lançar livros de artista hoje em dia?
Sobre o meu porquê de fazer livros – quando o termo livro de artista surge na arte dos anos 60 do século XX é tomado como a obra de arte acessível e democrática, que questiona a arte como bem capitalista, é um espaço alternativo à galeria de arte. Eu revejo-me nesta filosofia do livro de artista. Autopublicar livros cria um público, que à semelhança do autor também é emancipado. Cria uma comunidade.

Quando a crise mundial se instalou em 2008, e “chegou” a Portugal em 2011, foi muito curioso assistir ao crescimento da área da publicação como prática artística: era algo que nos dava alento para continuar, que alimentava uma rede de pares. Citando o artista e editor Christoph Keller, “os livros fazem amigos”.

Recomenda-nos uma edição de autor recente lançada em Portugal.
A minha recomendação vai para Composição em Tempo Real: Anatomia de uma Decisão, que a Ghost Editions lançou no final de 2017, a partir da obra do coreógrafo João Fiadeiro. Este livro é orientado a partir da dobra numa folha de papel, uma estrutura que João Fiadeiro utiliza para os seus workshops de improvisação. É admirável como este livro transporta a performance para um projecto editorial.

É curioso que esta obra tenha recebido o prémio de melhor design de livro – o primeiro atribuído pela Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas. É curioso que a distinção seja atribuída a uma editora independente e não a uma editora mainstream, talvez porque as editoras independentes têm a liberdade de arriscar mais sobre o dispositivo livro. Este foi o último livro que a Patrícia Almeida lançou, editora da Ghost, artista e amiga de quem temos uma imensa saudade.

Sugerir correcção
Comentar