O passado voltou a apanhar Joe Biden, desta vez com sabor a “Me Too”
Duas mulheres acusam o antigo vice-presidente norte-americano de as ter abordado “de forma íntima”. Um comportamento que pode dificultar a sua provável candidatura à Casa Branca – quem não acredita que Biden é “sinistro”, admite que ele está “fora do seu tempo”.
Há três décadas, quando Joe Biden foi acusado de plágio logo nas primeiras semanas da campanha para as eleições de 1988 nos EUA, e teve de acordar do seu primeiro sonho de chegar à Casa Branca, poucos imaginariam que a ideia mais importante do seu discurso de desistência iria regressar em 2019 para o assombrar. Ao anunciar o fim da sua candidatura pelo Partido Democrata, em Setembro de 1987, o então senador do Delaware disse que “a sombra exagerada” dos seus erros no passado “obscureceu a essência daquilo que o Joe Biden representa”. Agora, 32 anos mais tarde e numa altura em que se prepara para lançar uma terceira corrida à cadeira de sonho da Sala Oval, o passado veio outra vez bater-lhe à porta: duas mulheres, ambas do Partido Democrata, acusam-no de as ter tocado de forma íntima, “reservada aos amigos próximos, familiares ou parceiros românticos”.
A primeira acusação foi feita na sexta-feira passada por Lucy Flores, de 39 anos, uma antiga candidata a vice-governadora do Nevada pelo Partido Democrata.
Num texto publicado no site The Cut, Lucy Flores diz que mudou a forma de olhar para Joe Biden em 2014, durante um comício da sua campanha eleitoral em que o então vice-presidente dos EUA se prontificou a participar. Segundo Flores, momentos antes da sua subida ao palanque para discursar, quando ainda estava nos bastidores, Joe Biden abeirou-se dela por trás, pôs-lhe as mãos em cima dos ombros, cheirou-lhe o cabelo e deu-lhe um “beijo prolongado e lento” na cabeça. Era a primeira vez que Flores e Biden estavam juntos no mesmo espaço.
“O meu cérebro não conseguiu assimilar o que estava a acontecer. Fiquei envergonhada. Fiquei chocada”, disse Flores. “Não conseguia mexer-me nem conseguia dizer nada. O que eu mais queria era afastar-me de Biden.”
A então candidata a vice-governadora do Nevada pelo Partido Democrata disse que contou o episódio a algumas pessoas da sua equipa depois do comício e que se debateu com muitas dúvidas nos anos seguintes: “Será que é uma verdadeira transgressão quando um homem nos toca e beija sem o nosso consentimento, sem chegar ao nível a que a maioria das pessoas considera ser agressão sexual? Fiz o que a maioria das mulheres faz, e segui em frente com a minha vida e com o meu trabalho.”
Mas, à medida que Joe Biden foi dando sinais de que poderia candidatar-se às eleições presidenciais de 2020, Lucy Flores decidiu contar os pormenores da sua “estranha interacção” com o então vice-presidente dos EUA – um comportamento que “não foi violento ou sexual”, mas que foi “humilhante e desrespeitoso”, diz Flores.
Como exercício, Lucy Flores pede aos seus leitores que se imaginem no local de trabalho, numa empresa comum. “Um colega do sexo masculino, com quem não têm qualquer relacionamento pessoal, aproxima-se de vocês por trás, cheira-vos o cabelo e beija-vos a cabeça. Agora imaginem que esse colega é o presidente da empresa.
"Puxou-me para ele"
Esta semana, quando Joe Biden já torcia para que o caso Flores se escapasse por entre os pingos da chuva de notícias, com o aproximar da campanha eleitoral, surgiu outra mulher a acusá-lo. Amy Lappos, uma antiga ajudante do congressista Jim Himes, do Partido Democrata, disse que Biden se aproximou dela numa campanha de recolha de fundos, em 2009, no estado do Connecticut, e que a puxou para esfregar o nariz no nariz dela.
“Biden fez-me algo parecido”, disse Amy Lappos no Facebook, numa reacção à acusação de Lucy Flores. “As mulheres que vêm para aqui desculpar isto, como se fosse apenas uma coisa de rapazes, e que dizem que não é tão grave como o Trump, deviam ter vergonha. Posso falar por experiência própria quando digo que é uma situação incrivelmente desconfortável e inaceitável.” Mais tarde, em declarações ao jornal Hartford Courant, do Connecticut, Amy Lappos disse que chegou a pensar que Biden ia beijá-la na boca.
“Não foi sexual, mas ele agarrou-me na cabeça. Pôs a mão à volta do meu pescoço e puxou-me para ele, para roçar o nariz dele no meu”, disse.
A imagem de Joe Biden perante os eleitores norte-americanos é difícil de resumir em poucas palavras. Os oito anos como vice-presidente de Barack Obama deram-lhe algum peso entre as minorias, mas nunca se livrou completamente dos tais “erros” do passado, como já admitia em 1988, aos 44 anos, quando sonhou ser o mais jovem Presidente dos EUA desde John F. Kennedy.
Agora, aos 76 anos, quando sonha vir a ser o mais velho Presidente da História dos EUA, Biden é mais uma vez apanhado pelo seu passado de decisões, opiniões e comportamentos que perderam quase todo o espaço de manobra na América do movimento “Me Too”.
Esta terça-feira, a todo-poderosa Nancy Pelosi, líder da Câmara dos Representantes e figura maior no actual Partido Democrata, indicou isso mesmo numa entrevista ao site Politico: “Acho que [as acusações] não o desqualificam. Mas ele tem de perceber que no mundo em que estamos agora, o espaço das pessoas é muito importante para elas, e o que importa é a forma como elas se sentem, e não qual foi a intenção.”
"Sinistro” ou “amigo"?
Há anos que circulam nas redes sociais e em sites de informação vídeos e fotografias de Joe Biden a encostar-se a mulheres e a murmurar-lhes ao ouvido. Para uns, Biden é o “friendly grandpa” (o avôzinho amigo); para outros, é o “creepy uncle” (o tio sinistro).
Aos últimos, o veterano da política norte-americana diz que o seu comportamento é apenas a manifestação de uma personalidade calorosa. Uma justificação que repetiu no fim-de-semana, quando respondeu à acusação de Lucy Flores num comunicado partilhado pelo seu chefe de imprensa, Bill Russo.
“Ao longo de muitos anos, em campanhas eleitorais e na vida pública, dei inúmeros apertos de mão, expressões de carinho, apoio e conforto. E nem por uma vez – nunca – achei que agi de forma imprópria. Se é sugerido que fiz isso, vou ouvir com todo o respeito”, disse Joe Biden.
Em sua defesa, várias mulheres que trabalharam com ele ao longo dos anos (Biden foi eleito senador em 1973 e só saiu em 2009, para se juntar a Barack Obama na Casa Branca) vieram elogiar a forma como sempre as tratou – incluindo muitas das mulheres com quem Biden foi filmado a sussurrar-lhes ao ouvido, sempre em acontecimentos públicos.
Mas seja como “creepy uncle”, ou como “friendly grandpa”, Biden vai passar muito tempo a defender-se do seu passado se decidir mesmo candidatar-se às eleições de 2020 – uma decisão que deverá ser anunciada até ao fim de Abril. Ainda que o provável candidato do Partido Republicano, o Presidente Donald Trump, seja acusado de tratar as mulheres como objectos – e de ter admitido, numa gravação em vídeo, que costuma apalpar as mulheres sem o seu consentimento –, essas acusações foram conhecidas durante a campanha de 2016 e não afugentaram os seus eleitores.
Para além da questão sobre o seu comportamento perto de mulheres, Biden é também visto pelos seus críticos no Partido Democrata como alguém que andou sempre atrás da História, para mais tarde se mostrar arrependido pelas suas decisões e opiniões.
Em 1991, como líder da comissão do Senado que ouviu a professora Anita Hill a acusar o juiz Clarence Thomas de assédio sexual, não a protegeu da chuva de perguntas hostis dos senadores do Partido Republicano; recentemente, admitiu que Hill pagou “um preço terrível” e disse que “gostaria de ter podido fazer alguma coisa”, apesar de ter sido ele a liderar os trabalhos da audição. E Anita Hill diz que ainda hoje espera um pedido de desculpas de Joe Biden.
E, em 2002, votou a favor da guerra no Iraque, uma posição de que se veio a arrepender poucos anos mais tarde, como muitos outros senadores norte-americanos. Mas a verdade é que este ano, à partida para a campanha eleitoral, Joe Biden é o único dos pesos-pesados que tem de explicar o seu voto de há 17 anos – Donald Trump estava longe da política em 2002 e Bernie Sanders votou contra.
Tudo mudou
Quase três anos depois das eleições de 2016, e quase dois desde início do movimento “Me Too”, não foi só o país que ficou diferente daqueles tempos em que os toques e os beijos sem consentimento eram apenas “coisas de rapazes”.
Com a eleição de Trump, e com a ajuda da candidatura do progressista Bernie Sanders, também o Partido Democrata mudou. Falta saber se ainda tem espaço para figuras como Joe Biden, que trazem daquele passado a imagem de um candidato longe dos tempos da juventude, branco, nem muito à esquerda nem muito à direita, e com um rol de arrependimentos políticos – à procura de um lugar na lista de candidatos com mais mulheres e mais progressistas na história do partido.
“Ninguém deve julgar toda a carreira de Biden pelos olhos de 2019, mas se ele se candidatar à presidência, é justo perguntar se é o líder certo para este momento”, disse a escritora e jornalista Michelle Goldberg num texto de opinião publicado no New York Times, que termina com uma sentença: “Ele é um produto do seu tempo, mas esse tempo acabou.”