“O investimento não é como o Anita Vai às Compras

Mário Centeno, ministro das Finanças remete para Setembro uma decisão sobre a sua permanência no cargo. E sobre o aumento da carga fiscal, diz que “falta PIB” nas contas que se fazem sobre os impostos.

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MIGUEL MANSO

Portugal apresenta, dentro de duas semanas, o Programa de Estabilidade (PE) com as contas públicas equilibradas e com um grau de liberdade que, diz o ministro das Finanças, “não tinha até aqui”. Sem as amarras do défice orçamental e com as eleições à porta, Centeno mantém o discurso cauteloso e lembra que o país ainda tem uma dívida pública superior a 120% do PIB. “Vamos apresentar um programa de estabilidade, não um programa eleitoral”, resume. Mas ao longo da conversa vai deixando sinais que de certa forma desvalorizam o papel dos partidos que, à esquerda, apoiam o Governo no Parlamento. Quanto à derrapagem do investimento, uma das críticas recorrente a este Governo, o ministro das Finanças responde que, em média, foi executado mais de 86% do investimento orçamentado, mais do que na legislatura anterior.

Depois de um défice de 0,5% em 2018, se quiserem manter o mesmo ritmo de redução que estava previsto para 2019, chegariam já ao défice zero este ano. É isso que vão fazer?
Estes exercícios de estimativa do défice são feitos com um grande grau de conservadorismo, para não haver aventureirismos. Temos a perspectiva que mais vale não sujeitarmos os portugueses a exercícios de rectificação, derrapagens, não-cumprimento das metas orçamentais, e fazer exercícios em que o rigor do lado da despesa e da receita é grande. A verdade é que temos cumprido as metas e até ido além desses resultados. Para 2019, o exercício que desenhámos no final do ano passado tem um saldo primário de 3,2% e assenta numa projecção para a evolução de juros, para a receita contributiva e para a evolução das obrigações de despesa do Estado que é compatível com um objectivo de défice de 0,2%. E não vale a pena habituarmo-nos à ideia de que vamos sempre ficar melhor do que as metas.

Aconteceu em 2018. Não altera as contas para 2019?
As metas têm um grau de conforto que é suficiente para garantir que Portugal não seja sublinhado nas notícias internacionais, nem internamente, com o mesmo sinal a que nos habituámos há muito tempo.

Portanto, podemos concluir que, no Programa de Estabilidade (PE), vão manter a meta de défice em 0,2%?
Sim, podem concluir.

Em relação ao saldo estrutural, já confirmou que o Objectivo de Médio Prazo exigido pelas regras europeias vai baixar para zero. Portugal vai cumpri-lo logo este ano, mais rápido do que se esperava?
O objectivo vai baixar a partir de 2020. Mas logo em 2019, é realmente possível cumprir, por confluência de dois factores: a redução do objectivo de 0,25% para zero e o muito bom desempenho orçamental de Portugal nos últimos anos, que faz com que Portugal tenha, em 2019, um saldo estrutural próximo de zero. 

Isso significa que, a partir de 2020, acabou a necessidade de consolidação orçamental?
Não. O que significa é que ganhámos aqui graus de liberdade na nossa política orçamental que objectivamente não tínhamos. A grande diferença é esta. Podemos fazer um programa que é pela primeira vez um programa de estabilidade, ou seja, vai demonstrar que a economia portuguesa atingiu uma posição de equilíbrio nas contas públicas que lhe permite encarar os próximos quatro anos numa noção de estabilidade no seu quadro orçamental. Agora, isto não quer dizer que possamos esquecer que temos uma dívida pública superior a 120% do PIB ainda hoje. Felizmente esse valor decresceu quase dez pontos percentuais nos últimos anos, mas o facto de o valor ser ainda elevado faz com que, embora o esforço orçamental que foi feito até agora se reduza, a situação orçamental de equilíbrio e de geração de saldos primários positivos significativos tenha de se manter.

E em termos de medidas que se traduzam na vida das pessoas, em que é que este novo quadro altera o PE?
Estamos num ano muito singular do ciclo político. E eu, até como presidente do Eurogrupo, tenho dito várias vezes que os países precisam sempre de demonstrar que as suas estratégias orçamentais são robustas aos ciclos económicos e aos ciclos políticos. Vamos apresentar um programa de estabilidade, não um programa eleitoral, e por isso vai manter-se no quadro dos compromissos que Portugal assumiu e que felizmente cumpriu todos.

E deseja ser o ministro das Finanças do novo Governo que irá colocar em prática essa estratégia?
Os jornalistas trazem sempre esta pergunta com outra roupagem, que é para ver se pega...

Antes do início da actual legislatura manifestou logo o desejo de ser ministro das Finanças... 
Espero ter dito nessa data que quem fazia a escolha não era eu. Tive a oportunidade única de conduzir as finanças públicas de Portugal nestes quatro anos que se demonstram ser quatro anos absolutamente únicos para o país. Vamos apresentar o PE, vamos entrar num novo ciclo eleitoral, o meu compromisso político com esta solução, com este programa, com a agenda para a década mantém-se. E eu contribuirei com certeza para mostrar que este caminho é bom para Portugal. Falaremos em Setembro.

Na última conferência de imprensa, pareceu querer endurecer o discurso em que alerta contra os riscos de “querer dar tudo a todos”. É já um alerta contra uma futura solução governativa, envolvendo os partidos à esquerda do PS?
Não, não sei qual vai ser o futuro resultado das eleições. Os meus discursos enquanto ministro das Finanças têm sido sempre muito cautelosos, tentando passar essa cautela para outros. 

Não parece o discurso do “não há alternativa"?
Nós fomos para o Governo negando a ideia de que não havia alternativas. Não posso negar isso agora e dizer que só há esta alternativa. As alternativas existem sempre. Agora, as alternativas que temos à nossa frente são muito simples: de um lado temos um conjunto de propostas políticas que põem em causa a estabilidade que hoje conquistámos, pondo em causa a participação na União Europeia, pondo em causa a presença no euro...

Como?
Pôr em causa os objectivos orçamentais é pôr em causa estas duas coisas. E falam em reestruturação da dívida. Tudo isto são projectos políticos possíveis, mas é preciso explicar aos portugueses quais são as consequências de seguir este caminho. E temos outros projectos, que continuam a defender a austeridade, pondo em causa aquilo que é o Estado ou o papel dos impostos numa economia. Consideramos que essa visão tem sempre impactos muito negativos para a economia. Ao dizer isto, o que estou a dizer é que sempre acreditei no projecto definido em 2015, cumprimos esse trajecto à risca, principalmente na parte económica e orçamental. E quando não o cumprimos foi porque tivemos melhores resultados do que aquilo que antevíamos.

E não há o reverso da medalha? Nas políticas mais sociais também há razões de queixa...
Também nas políticas sociais houve evoluções que foram significativas e mesmo impensáveis. Ninguém acreditava que conseguíssemos. À direita não se acreditava que se conseguisse este tipo de políticas porque se considerava que se ia pôr em risco a estabilidade orçamental. À esquerda, queria-se fazer estas políticas, mas achava-se que, para fazer estas políticas, tinha de se desbaratar as finanças públicas.

Há um conjunto de medidas de carácter social, que, se não fossem os partidos mais à esquerda, não teriam avançado...
Desconheço quais sejam essas.

Ao longo dos orçamentos, não foram sendo acrescentadas medidas diferentes ou de aceleração na reposição de rendimentos?
No programa de Governo, do ponto de vista dos impostos, tínhamos exactamente as mesmas medidas que acabámos por aplicar, por exemplo.

E na recuperação das carreiras?
Fizemos o descongelamento das carreiras exactamente da mesma forma como o colocámos. Depois, naturalmente, há uma margem negocial. Mas essa margem negocial nunca pôs em causa o objectivo de estabilidade. Nunca.

Pode-se dizer que está o subir o tom neste discurso de alerta contra o gastar mais do que se pode”?
O povo português usa uma expressão muito engraçada que é “com o casaco do meu pai, eu pareço um homem”. E a sensação que tenho é que há muita gente a querer vestir este casaco de estabilidade e de enorme sucesso da economia portuguesa. Se tivéssemos repudiado a dívida e pedido uma reestruturação, se tivéssemos posto em causa a participação no euro, ou se tivéssemos aplicado o corte dos 600 milhões nas pensões ou o aumento do IVA que estava previsto numa nota de pé de página do PE de 2015, o país hoje não era o mesmo. E é preciso que ninguém se ponha neste fato sem acreditar nele.

Este discurso parece ser para os partidos à esquerda, mas não será também para o interior do PS? Por exemplo, na questão dos aumentos para os salários mais baixos na função pública, foi o líder parlamentar Carlos César que veio publicamente assumir que era importante, e aconteceu...
Todos achamos que é importante. Já tínhamos sinalizado que poderíamos ir mais longe. Governar é exactamente isto, não há outro objectivo que não seja construir as condições para que no futuro o país possa ter outro tipo de políticas mais próximas das famílias, mais próximas de quem mais necessita. É esse o papel do Estado social, mas não o podemos fazer de forma desregrada.

No défice, têm acertado, mas há áreas em que as metas não estão a ser cumpridas. O investimento público não cresceu 40% como estava previsto no OE, mas perto de 10%. Como é que explica uma diferença tão grande?
O investimento público está a crescer há dois anos, e este ano também, acima de 10%. Nesta legislatura, a percentagem de investimento que é executada face àquela que estava orçamentada no respectivo orçamento tem sido, em média, da ordem dos 86,5%. Na legislatura anterior, o valor foi de 84%. Ou seja, na legislatura anterior, deixou-se mais investimento orçamentado por executar.

Portanto, o que está a dizer é que este investimento abaixo do previsto é normal?
Eu explico porquê. O orçamento é uma autorização de despesa. O Governo só pode gastar aquilo que o Parlamento autoriza. O investimento não é como o Anita Vai às Compras, não vamos com o Pantufa, com um cesto, comprar investimento. O investimento tem concursos e às vezes os concursos ficam desertos. Tem acontecido durante este ano, porque ninguém faz propostas abaixo do preço que a Administração Pública coloca como valor máximo de licitação. A questão é que, mesmo nestes casos, tem de haver uma autorização de despesa.

As autorizações têm de lá estar em contabilidade pública. Em contabilidade nacional, o que está em causa é uma estimativa, que foi exagerada, alterando a composição da redução do défice que estava prevista...
Não altera muito. Porque se formos ver a diferença entre investimento e a receita de capital, aquilo que se verifica é que a receita de capital ficou sempre muito mais abaixo do investimento. Ficou sempre muito mais receita de capital por concretizar do que investimento, o que significa que o contributo daquilo a que se chama saldo de capital para a consolidação foi negativo. É o contrário do que me estão a dizer.

A carga fiscal ficou em 2018 um ponto percentual acima do orçamentado. Como é que é possível um erro de previsão desta magnitude?
É um desvio, não lhe chamava erro. E tem explicação. A carga fiscal é um conceito que relaciona a receita fiscal com o PIB. Acontece que não há nenhum imposto cuja base de incidência seja o PIB. Ninguém paga o seu IRS com base na evolução do PIB. Pagamos com base na remuneração que temos. Em Portugal, principalmente em 2018, o PIB cresceu 3,6% em termos nominais, a receita de IVA cresceu 6,2%, a receita de contribuições sociais cresceu 6,6%. Mas as taxas de IVA ou não aumentaram ou caíram. As taxas da Segurança Social, todos sabemos, mantiveram-se estáveis. O que aconteceu foi que o consumo no território acelerou, a sua composição mudou e os salários cresceram muito mais do que o PIB, o que significa que estes dois impostos, mas também o IRS, cuja incidência caiu através da subida do mínimo de subsistência e da revisão dos escalões, aumentaram mais do que a economia.

E acima do previsto no OE...
Mas não por causa das taxas, que é aquilo que a carga fiscal quer medir.

Mas por que é que não estava previsto?
O cenário orçamental foi feito de uma forma conservadora, para não termos daquelas surpresas: “Olha que azar: gastámos mais do que o que tínhamos”.

Mas 2000 milhões de euros de almofada não é excessivo?
Não é de almofada. Quando apresentarmos o PE, antevejo que vamos ter muita gente a dizer-nos que somos os mais optimistas, mesmo não sendo verdade, de todas as previsões orçamentais. Imaginam o que seria se eu tivesse aparecido no final de 2017 com uma previsão orçamental que se aproximasse desse valor? Estou mesmo a ver os títulos. E há outra questão: o que eu acho hoje, quando fazemos a conta para a carga fiscal, é que falta PIB para esta economia. 

O que quer dizer com “falta PIB"?
Vamos a ver, 7,5% de aumento da massa salarial, 8,3% de aumento do IRC. Temos de esperar que a estimativa final sobre o PIB esteja disponível.

Então falta PIB nas estatísticas, é isso?
Sim. Eu estou à espera que tenhamos todos os dados disponíveis. Isto não é uma crítica, nem sequer à forma como se estimam estas variáveis em contas nacionais, não há nenhuma dúvida sobre isso. Acontece é que há um intervalo de tempo no conhecimento destas estatísticas, que nos obriga a ter muita calma antes de começarmos a fazer muitas análises.

Se a receita fiscal e contributiva não tivesse subido mais 2000 milhões do que o previsto no OE, o que é que tinham feito para cumprir a meta do défice?
Estamos a falar de uma estimativa que tem freios e contrapesos e que precisa de uma gestão diária. Não chegamos ao dia 26 de Novembro [quando o Orçamento do Estado é aprovado no Parlamento], carregamos num botão e o orçamento chega ao fim direitinho. Há muitas decisões que têm de ser tomadas dentro da política orçamental, há muitas decisões que têm de ser monitorizadas consoante a evolução que vamos observando destes agregados.

E há as cativações…
Não há nenhum orçamento que possa ser gerido, em nenhuma organização do mundo, se não tiver travões e aceleradores.

Esta consolidação ajudada com um aumento dos impostos acima da evolução da economia é menos sustentável? Quando o turismo abrandar, o desemprego voltar a subir, não teremos o efeito contrário daquilo que temos agora?
Todos nós acreditamos que mais impostos sobre as actividades onde eles recaem tem um efeito negativo nessas actividades, porque senão aumentávamos os impostos até ao infinito.

Se o conjunto de políticas que adoptámos, incluindo a redução de impostos, teve como impacto um aumento das receitas fiscais desta dimensão, significa que também estas reduções de impostos tiveram efeitos positivos sobre a actividade económica, principalmente sobre a capacidade do Estado gerar receitas com taxas de impostos mais baixas. Não acho que este conceito seja estranho à nossa direita, que tem sido a paladina da vociferação da carga fiscal. Se baixámos as taxas e aumentámos a receita, fizemos o que devíamos fazer: libertámos a economia e, com a receita fiscal adicional, financiámos os 2200 milhões de euros de aumento da despesa com pessoal, os 3600 milhões de euros de aumento nas prestações sociais e os mais 450 milhões de euros que o investimento tem nesta fase da legislatura.

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