Lampreia com sabor a saudade num jantar de homenagem a Maria de Lourdes Modesto
O livro Cozinha Tradicional Portuguesa, “bíblia” da gastronomia, foi celebrado num jantar, naturalmente emotivo e cheio de memórias, da primeira Porto Food Week.
Perdoem-me o tom confessional, mas não podia passar-lhe ao lado. Sou, por natureza, um bom garfo, embora não goste de pimentos, de brócolos e de couves-de-Bruxelas. De resto, entre peixes e carnes, marcha praticamente tudo. Vísceras, então, venham elas: rins, línguas, caras de bacalhau, orelha e rabo de porco e outras miudezas que tais. Lampreia, o ciclóstomo que a muitos afasta só pelo olhar, marchou até 2002. De então para cá, nunca mais lhe toquei.
A última vez que tinha comido lampreia fora em Monção. O meu pai estava já muito doente e pediu-nos para o levarmos lá. Fomos sete, em dois carros em marcha quase lenta, que ele já aguentava mal as viagens. Deliciámo-nos nós, deliciou-se ele. E depois ele morreu em Julho. A partir daí nunca mais comi lampreia. Foi quase como se quisesse guardar intocada aquela memória de um almoço feliz numa família que poucos meses depois estaria amputada para sempre.
Esta semana, quebrei o laço. Não foi intencional, aconteceu. O jantar que a primeira Porto Food Week planeou para homenagear Maria de Lourdes Modesto teve lugar no Euskalduna Studio. Numa sala a média luz, alinharam-se uns 20 comensais que responderam à chamada para provar as interpretações que três chefs do Porto fizeram do livro Cozinha Tradicional Portuguesa: o anfitrião Vasco Coelho Santos, Arnaldo Azevedo, que se prepara para chefiar a cozinha do Hotel Vila Foz, e Pedro Braga, do Mito. À espera de cada um, em cima da mesa, um pequeno livrinho, manuscrito, explicava que aquela noite seria de “tributo a Maria de Lourdes Modesto”, “diva da gastronomia portuguesa”, e levantava o véu sobre os pratos que seriam servidos. E lá estava ela, a lampreia. Confesso que cheguei a pensar decliná-la.
O jantar teve nove momentos, repartidos por cada um dos três chefs. Abriu com um folar de Valpaços, “uma memória familiar” de Pedro Braga – “A minha cunhada é transmontana, foi ela que me trouxe os enchidos.” Assinatura de Pedro também no xerém algarvio e no pão de rala alentejano, uma das sobremesas servidas.
Arnaldo Azevedo preparou um torricado de pão com cogumelos shitake e cantarelos, numa interpretação de um prato transmontano, açorda de marisco (Estremadura) e um portentoso arroz de sarrabulho (Entre Douro e Minho).
O anfitrião de mais esta etapa da Porto Food Week serviu sopa de espargos (Alentejo) e um bolo de mel da Madeira com gelado de gengibre, num piscar de olhos também aos Açores. E a referida lampreia (Beira Litoral): apresentou-a numa versão à bordalesa, mas frita, com ovas e pickles de cebola. Não foi de ânimo totalmente leve que a provei, mas assim que a levei à boca percebi que, apesar da saudade que invocou, não devia ter passado todos estes anos sem comer lampreia. Obrigada, Vasco.
“Obrigada” foi também o que lhe disse Maria de Lourdes Modesto, que quase até ao último dia confirmou a sua presença neste jantar-homenagem, mas acabou por falhá-lo: os 88 anos não o permitiram. Sendo assim, Vasco Coelho Santos foi ao encontro da gastrónoma e teve oportunidade de lhe preparar “umas tripas à moda do Porto”. “Foi um momento incrível, muito especial”, comenta o chef. E acrescenta que, nesta mesma tarde (terça-feira, 26), a Confraria do Pão-de-Ló entregou no Euskalduna “umas 12 caixas” de bolinhol de Vizela, porque Maria de Lourdes Modesto entendeu que um jantar destes não podia deixar de ter pão-de-ló. É com ele que termina o jantar. Com chave de ouro, portanto.
A Porto Food Week, por seu lado, termina este sábado, com a Baca na Brasa, no Hotel Pestana Palácio do Freixo, onde “nomes cimeiros da restauração tradicional” (Rui Martins, RIB Beef & Wine, Porto; Luís Gaspar, Sala de Corte, Lisboa; António Carvalho, Brasão, Felgueiras; e Tony Salgado, do Pestana Palácio do Freixo) vão “celebrar o fogo, a brasa e o gado bovino de excelência).
À Fugas, Paulo Amado, das Edições do Gosto, organizador desta primeira Porto Food Week, sublinha que a cidade “está com um pulsar que precisa de fazer saltar cá para fora a sua criatividade” e que isso justifica o sucesso dos momentos de partilha entre cozinheiros, restauradores e público em geral ao longo dos últimos dez dias. É também por esta razão que a Porto Food Week não se esgota este sábado: durante este ano, outros eventos serão organizados na cidade sob este chapéu. E, entretanto, Paulo Amado já está a trabalhar na organização da Guimarães Food Week. “A necessidade de eventos gastronómicos a Norte gerou esta onda.”