Os ucranianos escolhem um Presidente, e querem alguém diferente

O favorito na primeira volta das presidenciais é um actor sem experiência política, e o segundo lugar é disputado por Petro Poroshenko, que busca a reeleição, e a ex-primeira-ministra, Iulia Timochenko.

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Volodimir Zelenskii, o candidato que mistura realidade e ficção vai à frente nas sondagens STEPAN FRANKO/EPA
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Petro Poroshenko procura a reeleição,Petro Poroshenko procura a reeleição SERGEY DOLZHENKO/EPA,SERGEY DOLZHENKO/EPA
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A ex-primeira-ministra Iulia Timochenko disputa um lugar na segunda volta Vasily Fedosenko/REUTERS

Num país dominado por políticos corruptos capturados por interesses privados, um professor de liceu torna-se o porta-voz do descontentamento geral e chega a Presidente da República. Neste país governado por políticos corruptos, um actor celebrizado pelo papel como Presidente numa das séries televisivas mais populares lança uma improvável candidatura à presidência que o torna o favorito a ocupar o cargo.

A primeira frase resume a trama de uma das séries mais vistas na Ucrânia; a segunda o panorama real na primeira volta das presidenciais ucranianas, este domingo. A imprevisibilidade é a nota dominante, numas eleições que serão disputadas ao milímetro por um actor sem experiência na política, pelo actual Presidente, e por uma carismática antiga primeira-ministra com traços populistas.

Numa clara indicação das fracturas que marcam hoje a Ucrânia, há mais de 40 candidaturas às eleições, um número recorde que dificulta qualquer previsão. Grande parte tem outros propósitos que não os da vitória eleitoral – há candidaturas que pretendem posicionar um partido para as eleições legislativas, em Outubro, outras são financiadas apenas para roubar votos a outros candidatos.

Porém, “a profusão de candidatos indica uma procura popular por novos líderes”, observa o director do programa ucraniano do Instituto Kennan, Mikhail Minakov, num artigo publicado pelo Centro Carnegie de Moscovo. Semelhante análise é feita pelo politólogo Volodomir Fesenko, citado pelo site CodaStory, que diz que os ucranianos procuram “um político inexperiente, uma pessoa de fora do sistema político que vá contra as regras da política”.

Um líder de audiências

É aqui que entra em cena – literalmente – o actor Volodimir Zelensky a quem as sondagens atribuem uma liderança consistente nas intenções de voto. É já como Presidente que os ucranianos estão acostumados a ver Zelensky, de 41 anos, embora ainda no campo da ficção. O actor é o protagonista da série O Servo do Povo, uma das mais populares no país sobre um professor de História cujo discurso inflamado contra a classe política nacional é filmado por um aluno e se torna viral. Contra todos os prognósticos, a personagem é eleita Presidente e afasta todos os políticos corruptos que encontra, sem recear recorrer à violência.

Desde que estreou, em 2015, que a série é um sucesso de audiências e há bastante tempo que se especulava que Zelensky pudesse entrar na política real. O anúncio acabou por ser feito na véspera de Ano Novo, numa transmissão televisiva especial conduzida pelo próprio Zelensky – transmitida à mesma hora que o tradicional discurso de fim de ano do Presidente, Petro Poroshenko.

Zelensky não se tem coibido de usar a imagem ficcional da sua personagem – até o nome do partido que fundou é o mesmo da série. As suas acções de campanha lembram mais um espectáculo de stand-up comedy do que um comício e o esbatimento das fronteiras entre a realidade e a ficção põe em risco até a lei eleitoral: no dia anterior às eleições, em que a propaganda política está proibida, o canal que transmite O Servo do Povo passou uma emissão especial da série.

O oligarca não faz rir

O discurso de pureza política de Zelensky tem sido atacado pelas ligações do actor ao empresário Igor Kolomoiskii, um dos principais oligarcas ucranianos e proprietário do canal que emite O Servo do Povo. O candidato tem afirmado que nada o liga a Kolomoiskii, mas a integração do advogado do oligarca na equipa de campanha de Zelensky e até o facto de a segurança dos seus comícios ser garantida pelos guarda-costas do empresário parecem indicar laços profundos.

Além disso, Kolomoiskii tem todas as razões para querer vingar-se do actual Presidente, Petro Poroshenko. Há dois anos, o Governo nacionalizou o PrivatBank, o maior banco do país e que pertencia a Kolomoiskii, com o argumento de que estaria a ser usado para lavagem de dinheiro e fraude.

As propostas de Zelensky parecem resumir-se à sua própria figura carismática e ao facto de não ter passado político. “Eu não desapontei as pessoas. Identificam-se comigo porque sou aberto, fico magoado, fico zangado, fico chateado, não escondo as minhas emoções à frente da câmara”, disse numa entrevista à Reuters. Num país há décadas desapontado com os seus líderes políticos, a simples promessa de uma cara nova poderá ser suficiente, em especial quando os seus principais adversários são duas das caras mais conhecidas da política nacional.

Com a vitória de Zelensky quase certa na primeira volta, as sondagens indicam que a luta por um lugar na segunda volta, marcada para 21 de Abril, será disputada por Poroshenko, e pela ex-primeira-ministra, Iulia Timochenko.

O Governo da guerra

O julgamento eleitoral de Poroshenko coincide com a percepção dos ucranianos sobre o que foi alcançado após o movimento de protesto conhecido como Euromaidan, que levou à queda do anterior Presidente, Viktor Ianukovitch.

Poroshenko, um multimilionário da indústria dos chocolates e com um passado vasto em governos anteriores, foi eleito em 2014 num contexto de guerra intensa no Leste contra os separatistas pró-russos, que o próprio prometeu terminar “em algumas semanas”.

Essa promessa persegue-o até hoje, 13 mil mortos depois. Apesar de terem diminuído drasticamente de intensidade, os confrontos no Donbass persistem e o Governo não parece próximo de retomar o controlo sobre as regiões ocupadas.

Paradoxalmente, a guerra é um dos poucos temas que garante ao Presidente alguma popularidade. Poroshenko tem o crédito de ter reconstruído as Forças Armadas – a instituição mais respeitada pela população – e as suas visitas à linha da frente, em uniforme militar, tornaram-se um ritual.

A isenção de vistos para os ucranianos viajarem para a União Europeia e a criação de uma igreja ortodoxa nacional, independente do Patriarcado de Moscovo, são outras vitórias atribuídas a Poroshenko. Porém, o saldo parece ser insuficiente.

Os críticos de Poroshenko dizem que o seu mandato avançou muito pouco em reformas consideradas cruciais para o combate à corrupção e, nos últimos meses, o próprio Presidente viu-se perigosamente próximo de algumas acusações. Uma investigação jornalística revelou que o filho de um dos seus principais aliados participava num esquema de compra ilegal de equipamento militar russo que depois era vendido a preços inflacionados. Vieram também a público suspeitas de que a campanha de Poroshenko estaria a fazer uma compra de votos em larga escala – os seus aliados negaram as acusações.

“Os ideais originais da revolução da Euromaidan não se resumiam a uma aproximação ao Ocidente, algo que está indubitavelmente a acontecer com Poroshenko, mas também a melhorar a governação e reduzir a influência dos oligarcas”, nota o académico Balázs Jarábik, num artigo no site do Instituto Carnegie. “Em vez de desenhar uma linha em torno da corrupção e apresentar novas regras, Poroshenko mostrou-se um representante do antigo sistema, usando a agressão russa para incitar o patriotismo”.

Num país em que é o dinheiro dos oligarcas que faz funcionar a política desde a independência, o facto de o próprio Presidente ser um deles não tem ajudado. Quando foi eleito, Poroshenko tinha prometido desfazer-se dos seus negócios, mas não o fez. “A sua maior fraqueza é valorizar mais o dinheiro do que outra coisa qualquer”, disse à Reuters o deputado Mustafa Nayyem, um ex-aliado de Poroshenko.

Timochenko vs Poroshenko

As eleições deste ano voltaram a trazer para a ribalta um dos rostos mais conhecidos, e polémicos, da política ucraniana: Iulia Timochenko, celebrizada depois da Revolução Laranja, de 2004. Até Zelensky ter entrado na campanha, a ex-primeira-ministra de 58 anos parecia bem encaminhada para chegar à presidência, depois de duas candidaturas falhadas.

Timochenko adoptou um tom duríssimo, especialmente dirigido a Poroshenko, para tentar apresentar-se como porta-voz das frustrações dos ucranianos. Uma das suas principais bandeiras foi a subida do preço do gás natural – causada pela reestruturação da empresa pública Naftogaz – que chegou a definir como um “genocídio” levado a cabo pelo Governo.

Timochenko não disse, contudo, o que faria para reverter o empobrecimento das camadas mais frágeis da sociedade ucraniana. A candidata garantiu que, se fosse eleita, iria cumprir os compromissos previstos pelo acordo assinado com o Fundo Monetário Internacional, mas prometeu negociar alguns aspectos do programa.

A campanha negativa de Timochenko contra Poroshenko chegou a níveis inauditos, como quando acusou uma ex-ministra da Saúde, de origem norte-americana, de ter sido “enviada por estrangeiros” para fazer experiências com os ucranianos. Mas também foi alvo de acusações de irregularidades no financiamento eleitoral, por ter escondido as fontes de várias doações.

É num ambiente de forte desmoralização que os ucranianos regressam às urnas, sem saber se algum dos candidatos lhes pode dar a esperança de um país diferente. Num artigo intitulado “Os candidatos são o principal defeito das eleições presidenciais ucranianas”, o colunista do Financial Times Tony Barber concluía que “nenhum [dos candidatos] inspira confiança de que haverá um abandono dos hábitos inculcados de governação aberta e velada oligárquica”.

O descrédito em que a política ucraniana voltou a cair – cinco anos depois dos grandes protestos na Praça da Independência, em que milhares de pessoas acamparam meses a fio no centro de Kiev para pedir o fim da corrupção e do compadrio, algumas das quais abatidas por snipers a mando do regime de Ianukovitch – parece atirar para bem longe esses ideais.

Conclui o analista do Centro Carnegie, Thomas de Wall, que “o que desaponta é não haver um candidato que manifeste o poder popular do movimento da Euromaidan de 2014-15”.

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