A ascensão e queda do Ajax-total
Foi em Belgrado que se jogou a última das três finais da Taça dos Campeões Europeus ganha, de forma consecutiva, pela equipa de sonho do emblema holandês.
O Ajax-Juventus repete-se dia 10, na Liga dos Campeões, mas no primeiro de dez confrontos entre os dois gigantes, em 1973, já não há Rinus Michels, que mora em Barcelona. É o cordial Stefan Kovacs quem olha em redor para os 89 mil nas bancadas do Marakana. O palco da consagração.
Deverá haver uma versão romena do laissez-faire, já que depois de “O General” ter reinventado o jogo sem que se tenha apercebido de todas as réplicas que causou e que mexeram com a linha temporal ao longo das décadas seguintes, o novo técnico delega nos jogadores responsabilidade total, uma espécie de “Democracia Corinthiana” antecipada (sem Sócrates, e bem longe de São Paulo). Opta por não interferir, provavelmente não quer estragar.
Há Cruyff ainda e percebe-se, a cada toque na bola, o que ele é no meio daquela equipa ainda tão hippie, de cabelos compridos e barbas propositadamente desleixadas. Não é só o número que brilha mais do que os outros, aquele 14 nas costas do equipamento vermelho de cima abaixo, mas a forma como dribla e se detém, e volta a driblar. Controla o momento, e o adversário. Há, em muitas dessas jogadas, aquela que dá o penálti na final do Mundial do ano seguinte.
Também se percebe o que é a Juventus, logo ali no 10 tímido nas costas do já mestre táctico Fabio Capello, responsável por ligar com Bettega e Altafini, e ajudar a proteger a baliza de Zoff. A nata do futebol italiano encontra-se ali, embora amarrada historicamente ao processo defensivo, que nem o golo de Johnny Rep, num cabeceamento a sobrevoar o mítico guardião italiano, desata.
Sintomas de fim de ciclo
O Ajax caminha para o terceiro título consecutivo, mas não evita a pior exibição numa final. É verdade que a “vecchia signora” só ataca pela certa, mas os holandeses estão longe de desenhar em campo o seu futebol de assinatura, sintoma do que aí virá num futuro breve. A liberdade excessiva dada por Kovacs também desobrigara os jogadores de entreter. Se o planeta inteiro faz uma vénia à superioridade inequívoca dos amsterdamers, consagrados nesse 30 de Maio de 1973 e com a taça garantida em definitivo, os adeptos festejam pouco. Há pouco totaalvoetbal nessa noite em Belgrado. Certamente, não o suficiente.
Logo aos 5 minutos, o central Blankenburg vê o espaço, avança no terreno e, a meio do meio-campo, coloca longo na cabeça de Rep, que faz o tal golo – o quinto marcado contra nenhum sofrido em três finais por parte dos holandeses. O que se segue é uma Juventus a manter o bloco baixo e o Ajax a prosseguir no ataque, embora não de forma esmagadora, terminando em remates de longe de Haan, Neeskens ou Mühren, ou de mais perto, quando Cruyff consegue ver o que mais ninguém vê. Os italianos esperam que uma bola parada ou um erro dos rivais seja suficiente para bater Stuy. Não é.
“A final frente ao Inter foi a melhor das três e por larga distância. Ganhámos 2-0, e mantivemos os italianos sob pressão do primeiro ao último minuto. (…) O mundo inteiro ficou louco com o jogo. Era o futebol no seu melhor, e logo numa final”, relata Cruyff na sua autobiografia “My Turn”.
Essa tão sublime manifestação artística não é repetida na Jugoslávia. Os adeptos têm uma exigência que já não se estende aos futebolistas, e o clube só voltará a ganhar o maior troféu continental 22 anos depois.
Liberdade retira compromisso
Se Kovacs estende o sucesso de Michels, é ao romeno, sobretudo, que implicam a quebra pós-Belgrado. “O clube tinha acabado de ganhar a terceira Taça dos Campeões, e eu não há muito tinha renovado contrato por mais sete anos. Tinha acabado de ser pai, e decidido criar os meus filhos na Holanda por ser um ambiente familiar. Pensei que tinha o futuro garantido. Cedo percebi que não era bem assim. Com Kovacs, as coisas iriam rapidamente de mal a pior, de tal modo que não podia ficar. Enquanto Michels sempre planeou os treinos, o estilo de auto-desenvolvimento de Kovacs colocava em causa a disciplina no treino e nos jogos”, escreve Cruyff. O romeno dá o lugar a George Knobel no Verão, mas o mal já está feito, segundo o “mago” holandês. Até ao ponto de perder a braçadeira para Piet Keizer. “Perguntei a mim mesmo o que tinha feito mal. Como capitão era sociável, (…) mas a liberdade dada por Kovacs obrigava-me a agir quando achava que a nossa performance estava a sofrer por causa disso. Tinha de ser crítico, tanto em grupo como no plano individual.” Magoado, junta-se a Michels na Catalunha.
Os “Filhos dos Deuses” (de "Godenzonen") vencem Panathinaikos, Inter e Juventus em finais consecutivas. Na corrida para Belgrado, eliminam Bayern e Real Madrid, com Mühren a brilhar no Bernabéu. Mais do que o golo, há uma jogada que ainda lhe rende mais aplausos por parte dos adeptos espanhóis. A bola vem da direita, ele domina-a e mantém-na no ar com toques suaves, antes de a parar no peito do pé esquerdo e a deitar suavemente na relva por fim, até servir Krol, que corre pela esquerda. Aquele truque é a expressão da superioridade e da soberba do Ajax, bem perto do sucesso e do canto do cisne. Sem Cruyff e com cada vez menos futebol total, entrega o trono ao Bayern.
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