Pedro Marques e os “jobs for the wives”
Foi a avalanche de notícias que obrigou Marcelo a emendar a mão, e dele espera-se o contrário disso: não que ande a reboque da opinião pública, mas que vigie e proteja a boa ética republicana.
Misoginia. Só faltava mesmo esta: a invocação do conceito de “misoginia” para explicar as críticas à sobredose familiar do governo de António Costa. Quem teve a estapafúrdia ideia de utilizar tal palavra neste contexto? Nada mais, nada menos, do que Pedro Marques, cabeça de lista do PS às eleições europeias. Aplicando uma velha técnica que os socialistas aprimoraram no tempo de José Sócrates, Pedro Marques tentou transformar o escrutínio mais elementar, e o saudável desejo de transparência, numa malvada manifestação (lembram-se?) de infâmia e de canalhice.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, quando questionado sobre se não via qualquer mal na abundância de relações familiares no governo, Pedro Marques respondeu: “Julgo que isso está muito longe de ser tema central da política. Conheço muitas das pessoas que foram objecto de acusações nessa matéria e que são competentes no trabalho que fazem. Se repararem, foram muitas mulheres que acabaram por ser acusadas de estar nos lugares por causa das relações familiares e isso dá uma certa misoginia a esse tipo de ataques. Isso entristece-me. Mas não é tema que queira valorizar porque isso faz mal à democracia. É táctica eleitoral.”
Táctica eleitoral. Maltratos à democracia. Misoginia. E tristeza. Coitadinho do PS. E coitadinho do Pedro Marques. Os seus colegas enchem o Conselho de Ministros com pais, filhos, maridos e mulheres; os gabinetes ministeriais enchem-se com amigos, familiares e esposas; e o coração de Pedro Marques sofre com tanta injustiça. Talvez valha a pena recordar a definição de misoginia: ódio, desprezo ou preconceito contra mulheres. É preciso ter uma enorme cara de pau para sequer sugerir tal coisa – como se o sexo de quem está a ser favorecido interessasse minimamente para o caso. No último programa Governo Sombra, eu fiz uma piada acerca disto, dando os meus parabéns ao PS pela sua agenda progressista, já que o “jobs for the boys” do tempo de António Guterres se tinha transformado num muito mais moderno “jobs for the wives”. Pedro Marques deve ter levado a piada a sério, e aproveitou para despejar o pacote da demagogia barata em cima de um caso cada vez mais grave.
Aliás, é precisamente por se dar conta dessa gravidade que Marcelo Rebelo de Sousa também apareceu a corrigir as suas anteriores declarações, e a chutar para cima de Cavaco Silva a responsabilidade por permitir que marido, mulher, pai e filha estivessem sentados à mesa do mesmo Conselho de Ministros. Se isso está tecnicamente correcto (foi Cavaco, de facto, quem deu posse ao actual governo, e na altura Mariana Vieira da Silva, enquanto secretária de Estado adjunta do primeiro-ministro, já tinha assento no Conselho), a verdade é que convém não esquecer quais foram as primeiras declarações de Marcelo sobre o assunto: considerou-o “um não caso” e afirmou que os escolhidos estavam ali “por mérito próprio”.
Ora, o mérito nunca foi a questão, como o Presidente da República parece ter finalmente percebido, ao sublinhar que “família de Presidente não é Presidente” e que não se deve misturar “família com política”. “Não me apareçam com mais nomes”, avisou ele. Excelente aviso: só é pena não ter surgido há um mês. Foi a avalanche de notícias que obrigou Marcelo a emendar a mão, e dele espera-se o contrário disso: não que ande a reboque da opinião pública, mas que vigie e proteja a boa ética republicana, que nos últimos tempos tem andado a sofrer autênticos tratos de polé.