O estar-se em família na política prejudica a “renovação das elites” no país
Académicos ouvidos pelo PÚBLICO consideram que existência de relações familiares na política não contribui para restabelecer a já frágil confiança dos cidadãos nos políticos. E que a política tem de dar o exemplo.
O tema pode até não ser novo e a existência de dinastias também não ser um exclusivo da política, mas o certo é que está a incomodar muita gente. A existência de relações familiares na política, mais concretamente no Governo, tem feito correr muita tinta nos jornais. No último fim-de-semana, mais vozes se levantaram em protesto. Os académicos ouvidos pelo PÚBLICO, nesta terça-feira, são críticos da existência destas situações e, entre outros problemas, referem que estas práticas colocam entraves à “renovação das elites” no país.
Nos últimos dias, o tema voltou pela mão de diferentes protagonistas políticos: do Bloco de Esquerda ao PSD. A controvérsia continua a dever-se às relações familiares existentes entre ministros deste Governo, como é o caso, por exemplo, de Eduardo Cabrita e Ana Paula Vitorino (marido e mulher) e José Vieira da Silva e Mariana Vieira da Silva (pai e filha). Outro caso que causa burburinho: Ana Catarina Gamboa, mulher do ministro das Infra-estruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, foi nomeada para chefe do gabinete do secretário de Estado Adjunto e dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro.
Luís de Sousa é investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e debruça-se sobre questões relacionadas com ética e corrupção. O também membro Transparência e Integridade - Associação Cívica, da qual já foi presidente, não tem dúvidas de que a existência destes laços familiares na política – e num executivo – levanta vários problemas: em primeiro lugar, “desconstrói a visão idealista” de que na política estão as pessoas que, “pelo seu percurso profissional e mérito, em determinado momento da vida, estão disponíveis para retribuir à sociedade”. Ou seja, “passa a noção de que basta ser filho de A ou B para entrar na política” e que a política serve de “rampa” para a progressão na carreira ou para os negócios, diz o especialista.
Em segundo lugar, considera que contribui para a “não circulação e não renovação das elites”. Para Luís de Sousa, este tipo de práticas ajuda a que o sistema fique “estanque”, dificultando a entrada de “novas ideias” e de “pessoas que imprimam algum dinamismo aos sistemas de decisão e à política em geral”. Por outras palavras: “Afecta o recrutamento dinâmico da classe política”.
Por fim, mas não menos importante, pode prejudicar os processos de decisão, na medida em que pode pôr em causa a “objectividade e a imparcialidade” necessárias em certos momentos.
Já para o sociólogo e académico Pedro Adão e Silva, a questão do conflito de interesses é o aspecto menos relevante desta discussão. O mais relevante, diz, é uma “questão bastante profunda, de fechamento social e privatização da política”: “Aconteceu à política aquilo que aconteceu à maior parte das esferas da nossa vida que funciona numa espécie de bolha”, diz, referindo-se a “dificuldades de recrutamento” e a um “circuito fechado em que as pessoas se conhecem todas e têm poucas raízes naquilo que acontece fora das relações partidárias”.
Apesar de estar a falar do que se passa na política, Pedro Adão e Silva poderia estar a falar de outros sectores: “Acontece nos segmentos de elites. Mas a política não devia levar a que isto acontecesse.”
Diferenças entre a esquerda e a direita
Luís de Sousa – para quem a ética não se reduz à legalidade – e o politólogo André Freire concordam que estas práticas prejudicam a relação de confiança entre os cidadãos e os políticos. “Os cidadãos já andam desconfiados da política e dos políticos. [Estas situações] não são muito benéficas para melhorar este estado de coisas. Não é um elemento positivo para restaurar a confiança”, declara André Freire.
São “situações dúbias do ponto de vista ético”, mesmo que cumprindo a legalidade, concorda Luís de Sousa, notando que tocam num ponto “sensível” – na “questão do mérito para aceder a certas posições”. Criam desconfiança: “Fica sempre a suspeita de que não há critério ou rigor.”
A análise de Pedro Adão e Silva toca ainda noutros pontos. O docente considera que estas polémicas afastam eventuais novos rostos da política, reforçando o “padrão” em vez de o contrariar. E também entende que a discussão “encerra uma dimensão de género muito sensível”, relacionada com a entrada mais tardia, e que ainda enfrenta “obstáculos”, das mulheres na política. Apesar de considerar “natural que as mulheres que tenham actividade política se juntem com quem tem actividade política”, elas acabam por ser “o elemento novo, a novidade” no meio da discussão.
O sociólogo considera ainda que há uma “diferença entre a esquerda e a direita” no que toca a estes “mecanismos” de recrutamento e que pode levar a um maior número de ligações de proximidade à esquerda. Porquê? Porque o percurso à esquerda é, muitas vezes, marcado pela “participação cívica e política” desde cedo, começando logo na associação de estudantes da faculdade, por exemplo, até a um eventual “culminar” em algum cargo. Neste caso, a vida política, social e privada cruzam-se, e as pessoas conhecem-se, daquele meio, desde cedo. Já à direita, continua Pedro Adão e Silva, aquele recrutamento é feito “tipicamente” a partir dos “meios privados”.
Na hora de votar
Para André Freire, a desconfiança que estas escolhas geram no eleitorado é prejudicial para o ambiente democrático: “Independentemente da competência e das qualidades profissionais e políticas das pessoas, em política não basta ser, é preciso parecer. Em termos de imagem não é benéfico para o PS, para o Governo e para as instituições. É verdade que há países como os EUA, em que há dinastias políticas, mas confesso que não me parece muito republicano, devia haver um certo pudor.”
Outro ponto em que André Freire e Luís de Sousa concordam é na possibilidade de o assunto ter um impacto reduzido na hora do voto. Mesmo admitindo que o tema entre nas campanhas eleitorais que se avizinham, os académicos recordam que, na hora de votar, há outros factores de peso que passam, sobretudo, pelos indicadores económicos (emprego, poder de compra, entre outros). Para que este tema adquirisse essa relevância, teria de ter, por exemplo, contornos de “escândalo” com “dimensão penal”, diz Luís de Sousa, ressalvando, no entanto, que esta leitura pode mudar se houver uma sucessão de casos que o motive. “Os efeitos disto são mais difusos e vão além do partido que está no Governo. Afecta a classe política de forma geral e difusa, não tanto o voto”, acrescenta André Freire.
Pedro Adão e Silva considera que estas polémicas são mais penalizadoras para o Governo do que propriamente benéficas para os adversários: “Não creio que valha votos à oposição.” Até porque, explica, “estes temas da qualidade da democracia tendem a surgir mais quando a economia está bem” e “sai do centro do debate”. Se estas polémicas vão ou não pesar na hora de votar, Pedro Adão e Silva considera que depende de factores como o emprego/desemprego: “Os indicadores económicos contam, mas não são hegemónicos”, alerta.
Para Luís de Sousa, o argumento da confiança política para nomear alguém não chega. Porque para esse lugar, além da confiança política, é sempre necessária a competência técnica, argumenta. Apesar de estas relações familiares também existirem noutros sectores da sociedade, André Freire ressalva que a política, a “res publica”, tem uma responsabilidade diferente: “Tem de dar o exemplo. O exemplo republicano. Este tipo de coisas é característico dos regimes caracterizados pela hereditariedade.”
Os dois académicos não vêem com maus olhos uma tomada de posição da parte do Presidente da República. Para Luís de Sousa, o Presidente “deve tomar posição sobre esta e qualquer outra questão que afecte o clima ético da política”. Apesar de sublinhar que, “numa democracia liberal, as várias instituições políticas controlam-se umas às outras” e que não é “descabido” esperar que Marcelo se pronuncie ou intervenha, André Freire ressalva que tal não é uma “obrigação”.
Marcelo (que também tem, na sua genealogia, pergaminhos políticos) já tentou esvaziar a polémica, considerando, em Fevereiro, que o que estava em causa era “mérito próprio”. Nesta terça-feira não perdeu tempo e voltou a lembrar o processo de tomada de posse deste Governo: “Aceitei a solução nomeada pelo Presidente Cavaco Silva, que foi a de nomear quatro membros do Governo com relações familiares, todos com assento no Conselho de Ministros e tomei-a, aliás, partindo do princípio que o Presidente Cavaco Silva, ao nomear, tinha ponderado a qualidade das carreiras e o mérito dos nomeados para o exercício das funções. Depois disso, não nomeei nenhum outro membro do Governo com relações familiares, com exercício de funções no executivo e com assento em Conselho de Ministros.”
Antes, no início das declarações que fez aos jornalistas, ressalvou: “Tenho sobre essa matéria uma posição muito pessoal. Ao longo da minha vida política e também agora no exercício da Presidência, que é o entender que família do Presidente não é Presidente. Nisso, peco por excesso.”
Em Fevereiro, o politólogo António Costa Pinto, que tem estudado as elites, não se mostrava surpreendido com a existência de casos em que a vocação política era um traço comum na família. E, em declarações ao PÚBLICO, distinguia familismo de clientelismo. “Na maior parte dos casos, nas democracias modernas esta dimensão familiar foi perdendo os traços de clientelismo”.