Directiva dos direitos de autor é aprovada numa vitória para as indústrias de conteúdos
O texto aprovado inclui o Artigo 17 (antigo 13), que permitirá aos autores negociarem com plataformas como o YouTube.
A nova directiva dos direitos de autor foi aprovada no Parlamento Europeu, num desfecho que põe fim a um conturbado processo legislativo e que dá uma vitória às indústrias de conteúdos e à imprensa sobre as grandes empresas de Internet.
O texto aprovado nesta terça-feira inclui o controverso Artigo 17 (o antigo Artigo 13), que dá aos autores a possibilidade de cobrar pelos conteúdos disponibilizados pelas plataformas online, como o YouTube, mesmo que o conteúdo tenha sido carregado pelos utilizadores. Também inclui o Artigo 15 (o antigo Artigo 11), que permitirá às empresas de comunicação social cobrarem pelos links em agregadores, como o Google News, e nas redes sociais.
A directiva foi aprovada com 348 votos a favor, 274 contra e 36 abstenções. As novas regras, porém, ainda terão de ser transpostas para as legislações nacionais, num processo que pode demorar cerca de dois anos e que acabará por definir muito dos aspectos práticos daquilo que foi votado pelos deputados europeus.
Palmas e críticas
O resultado da votação foi recebido com aplausos no plenário de eurodeputados. “Ao prever a responsabilidade das plataformas, a directiva aumentará a pressão para que estas celebrem acordos de concessão de licenças com os titulares de direitos, que deverão receber uma remuneração adequada”, disse o Parlamento Europeu, num comunicado.
Porém, no final de um processo que foi disputado quase à vírgula, com várias partes em conflito e aguerridas campanhas de influência vindas de todos os lados, as críticas não tardaram.
A eurodeputada do Partido Pirata Alemão Julia Reda, uma das vozes mais sonoras contra o Artigo 17, lamentou o resultado nas redes sociais. “É um dia negro para a liberdade online”, escreveu no Twitter, acentuando que a decisão de não alterar o Artigo 17 passou por apenas cinco votos.
Durante a sessão em Estrasburgo, a eurodeputada do Bloco de Esquerda Marisa Matias, que em Fevereiro se juntou a uma campanha portuguesa contra o Artigo 17, mostrou-se céptica quando à possibilidade de a plataforma garantir uma “remuneração justa” para todos os autores. “Eu quero perguntar ao colega que referiu que não há remuneração justa para os criadores [sem directiva] que cite a parte da directiva onde está explícito que haverá remuneração justa para os criadores”, disse, repetindo um dos argumentos escutados durante a manhã de terça-feira. “Porque eu não a encontro. Há censura, mas remuneração justa para os criadores não está em lado nenhum...”
Por outro lado, o eurodeputado José Inácio Faria, do Partido da Terra, faz notar que é importante não esquecer o propósito da directiva. “Temos de nos lembrar porque é que esta directiva foi criada. Não foi criada porque as pessoas têm dificuldade em aceder à cultura ou à Internet”, disse. “Foi criada porque há cidadãos que querem usufruir do rendimento do seu trabalho e não podem.”
A Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) descreve o resultado final como “extraordinária vitória em defesa dos autores e da cultura” para a qual se orgulha de ter contribuído. Em Agosto, vários artistas e associações ligadas à indústria criativa em Portugal, incluindo a SPA, enviaram um apelo aos eurodeputados portugueses a defender a nova directiva. “[O resultado] demonstra a força dos autores”, lê-se num comunicado publicado no site da SPA.
Também o Google reagiu à votação, apontando “incertezas” trazidas pela nova lei. “A directiva dos direitos de autor foi melhorada, mas vai continuar a gerar incerteza jurídica e afectar as economias criativas e digitais europeias”, lê-se num comunicado da empresa, que diz estar “ansiosa por trabalhar com decisores políticos, editores, criadores e detentores de direitos” para aplicar as novas regras.
O que dizem as novas regras
As novas regras vão fazer com que as plataformas online tenham de obter, junto dos representantes dos autores licenças que abarquem, por exemplo, uma canção que um utilizador decida colocar no YouTube, ou, em alguns casos, um vídeo que tenha imagens protegidas por direito de autor (o YouTube, bem como o Facebook já têm tecnologia para identificar conteúdo protegido e que permite aos detentores de direitos pedir que sejam retirados das plataformas).
A directiva, no entanto, inclui excepções para enciclopédias online e para repositórios científicos e educativos, bem como para pequenas empresas, numa medida concebida sobretudo para proteger as startups europeias. Serviços que tenham, simultaneamente, uma facturação anual inferior a dez milhões de euros, até cinco milhões de visitantes mensais e menos de três anos de presença no espaço digital europeu não estarão sujeitos às obrigações do Artigo 17. Mas, ainda assim, terão de fazer esforços para impedir que conteúdo protegido por direitos de autor circule sem autorização nas suas plataformas, naquilo a que o Parlamento Europeu chama “um regime mais ligeiro”.
“É um desfecho positivo, embora os três anos de debate e negociação tenham gerado uma directiva híbrida, diferente da versão inicial”, diz a advogada Patrícia Akester, especialista em direitos de autor. “Não é um desfecho perfeito para os autores. Foram criadas muitas mitigações pelo meio a favor das grandes plataformas.”
Também o advogado especialista em direito informático Manuel Lopes Rocha, da sociedade PLMJ, nota que “o resultado é um compromisso” e que as mudanças “não serão assim tão radicais” como alguns críticos temem. O resultado final, diz, vai depender muito da interpretação das várias partes e dos acordos bilaterais que vão agora começar a ser firmados entre as grandes empresas tecnológicas e as entidades que representam os autores.
“O problema é que muitas destas matérias são deixadas em formas pouco precisas que têm depois de ser interpretadas por juízes. É preciso começar a preparar os juristas em Portugal”, diz Lopes Rocha.
Incertezas quanto aos filtros
O passo seguinte, explica Patrícia Akester, não é logo a utilização de sistemas de filtros. “Isso só acontece quando as empresas têm à sua disposição medidas tecnológicas adequadas, que funcionam, e se o processo não for muito oneroso”, observa Akester. “Para já ninguém sabe o que ‘muito oneroso’ significa exactamente. É algo que ainda tem de ser decidido a nível nacional. Mas haverá espaço para manobra, desde que as empresas mostrem que se esforçaram para licenciar os direitos.”
“Com a directiva, são as plataformas que passam a ter de contactar os detentores de autores para fazer o licenciamento, e não o contrário, que é o que acontece agora. O ponto de partida muda: a iniciativa tem de partir das plataformas”, refere Akester. A ideia de retirar e filtrar conteúdo será apenas o último passo. “E as plataformas só têm de o fazer se forem noticiadas pelo titular.”
Akester sublinha ainda que não há razão para temer o fim dos memes (adaptações humorísticas de vídeos, textos e imagens, que se espalham online), dos links (hiperligações) ou o aparecimento súbito de censura, como muitos detractores da directiva referiram. “Tem existido muita desinformação. E, em termos políticos, viu-se o domínio de uma narrativa europeia a favor das grandes plataformas norte-americanas. É fundamental lembrar que, acima de tudo, a directiva foi criada para proteger os direitos dos autores europeus.”
Já para Lopes Rocha a possibilidade de o Artigo 17 implicar filtros de conteúdo não pode ser posta de parte. “Veremos como é posto em prática. Com estas coisas, nunca sabemos até serem mesmo aplicadas. A directiva inclui, no entanto, várias ‘almofadas’ para prevenir a censura”, diz. “Não acredito que a mudança cause um retrocesso na liberdade. Vai é existir mais responsabilidade para as grandes plataformas.”
Dois anos de polémicas
Desde 2016, quando a Comissão Europeia propôs a directiva, que a tentativa de reformar os direitos de autor no espaço digital opôs várias partes com interesses em conflito.
De um lado, os representantes dos autores, em sectores que vão da música ao cinema, queixam-se há anos de que não são compensados de forma adequada pelas obras que são disponibilizadas online.
Do outro, multinacionais tecnológicas americanas (como o Google, o Facebook e o YouTube) tentavam evitar regras que interferissem com os seus serviços e que pudessem acarretar custos e, eventualmente, negociações demoradas com os autores.
Por fim, muitos académicos, grupos de activistas, alguns políticos e personalidades da Internet (como o inventor da Web, Tim Berners-Lee, e um dos criadores da Internet, Vint Cerf) protestaram contra as disposições do actual Artigo 17, receando que a nova lei cause restrições ao funcionamento normal da Internet.
Ainda neste fim-de-semana, cerca de 200 mil pessoas protestaram em várias cidades europeias contra a directiva.
Horas antes da votação final, em Estrasburgo, o eurodeputado alemão Axel Voss, relator da versão que foi aprovada no Parlamento, pediu aos colegas no Parlamento que se concentrassem no objectivo da directiva. “Queremos liberdade total na Internet, ou proteger os nossos valores?”, perguntou Voss aos eurodeputados. E acrescentou: “Para quem é esta directiva? Queremos proteger os criadores de conteúdos? É a questão central que estamos a decidir hoje.”
No plenário, os testemunhos finais dos deputados foram marcados por acusações de lobbying dos dois lados.
O eurodeputado francês Jean-Marie Cavada, firme defensor das alterações aos direitos de autor, acusou as grandes tecnológicas de utilizarem bots (algoritmos que simulam o comportamento de seres humanos nas redes sociais) para gerar alarme sobre a possibilidade de a directiva introduzir censura.
Nos últimos meses, Axel Voss queixou-se repetidamente de receber milhares de emails idênticos (preenchidos através de formulários online) de eleitores a queixarem-se da nova directiva.
Já o Google enviou cartas aos criadores de canais populares no YouTube, alertando para as possíveis consequências da aprovação da directiva. Em Portugal, os textos levaram vários youtubers populares a criarem vídeos sobre o possível impacto da directiva no conteúdo que criam.
Na sessão em Estrasburgo, a eurodeputada Júlia Reda defendeu a legitimidade dos protestos. “Hoje, com fotografias de protestos em massa em todo o mundo, alguns ainda insistem que os emails não vieram de pessoas…”, declarou, definindo as acusações de Cavada como rumores. “Nunca houve um protesto tão grande contra uma directiva na União Europeia.”