O milagre do Portugal sem padres pedófilos
O microcosmos madeirense faz parte do padrão internacional: um padre pedófilo, um bispo conivente, uma diocese silenciosa, uma Conferência Episcopal muda.
Na Austrália, a igreja anglicana recebeu 1.115 denúncias de abusos sexuais com crianças cometidos por 569 padres nos últimos 35 anos.
Nos EUA, a arquidiocese de Washington D.C. publicou uma lista com os nomes dos padres abusadores do seu distrito: Francis Benham, Salvatore Bucca, Raymond Callahan… São 31.
Em França, o cardeal Philippe Barbarin, arcebispo de Lyon, acaba de apresentar a renúncia ao Papa Francisco depois de ter sido condenado a seis meses de prisão por não ter denunciado abusos sexuais cometidos por um padre da sua diocese.
Antes da cimeira sobre a Protecção dos Menores na Igreja, Francisco pediu aos bispos de todo o mundo que recebessem vítimas abusadas por padres e gravassem as suas impressões. O Vaticano publicou vídeos com depoimentos de 13 bispos: Marselha (França); Armagh (Irlanda); Perugia (Itália); Poznan (Polónia); Luxemburgo; Westminster (Reino Unido); Houston (EUA); Munique (Alemanha); Bruxelas (Bélgica); Vilnius (Lituânia); Viena (Áustria); Zrenjani (Sérvia) e Aberdeen (Escócia).
Aqui? Nada. Portugal parece protegido por um milagre. Com raríssimas excepções, as vítimas não denunciam e a hierarquia não abre o baú. Percebe-se. Sabem que está cheio de esqueletos. Quem o abrir, vai ter trabalho e inimigos. A igreja tem um tempo diferente, já sabemos. Mas a pedofilia e abuso sexual dos padres católicos faz parte do debate público desde os anos 1980. Passaram mais de 30 anos e a igreja portuguesa mantém a atitude mais cómoda: não faz nada. O resultado é este faz-de-conta que somos um país onde a pedofilia na igreja começou e acabou no padre Frederico Cunha e pelo meio houve meia dúzia de ovelhas negras.
Por ser um estrangeiro com hábitos exuberantes, que usava caveiras na fivela do cinto e no anel, talvez o caso de Frederico Cunha ajuda a passar a mensagem de que o problema é dos “outros”. Mas a forma como a diocese do Funchal o protegeu mostra bem como isso é falso. O microcosmos madeirense faz parte do padrão internacional: um padre pedófilo, um bispo conivente, uma diocese silenciosa, uma Conferência Episcopal muda.
Durante dez anos, o bispo do Funchal, Teodoro Faria, empurrou o padre Frederico Cunha de paróquia em paróquia sempre que recebia queixas da população. Caramanchão, São Jorge, Ilha, Machico, Ribeira Grande, Maroces, Água de Pena são os nomes de que me lembro. Teodoro Faria reformou-se em 2007. Posso estar enganada, mas não vi nenhum dos seus sucessores fazer nem uma pergunta ao bispo, muito menos uma denúncia ou processo interno. Teodoro Faria tem agora 89 anos, mas continua activo: esta semana foi ao funeral de Maurílio de Gouveia, antigo bispo de Évora; em Fevereiro foi à tomada de posse do novo bispo do Funchal; em Janeiro deu uma entrevista ao Jornal da Madeira, e no Verão foi um dos dois bispos co-ordenantes da cerimónia de ordenação episcopal de José Tolentino de Mendonça como arcebispo, no Mosteiro dos Jerónimos, presidida pelo cardeal Manuel Clemente.
O padre Frederico Cunha tinha sido secretário pessoal do bispo Teodoro Faria e os dois eram muito próximos. Na altura, o bispo defendeu o seu amigo de forma fervorosa e comparou a acusação do Ministério Público à crucificação de Jesus Cristo. Depois da condenação a 13 anos de prisão, era dado como certo de que teria de ser afastado e sair da Madeira. Ficou mais 14 anos.
A peculiar organização da igreja católica não prevê nenhuma supervisão nacional da vida das suas dioceses. O chefe do bispo do Funchal é o Papa, não o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, que não tem poder jurídico sobre nenhuma das dioceses do país. Em Lisboa não sabem nada, do Funchal ainda não responderam a nenhuma das perguntas simples que enviei. Continuamos sem saber se os núncios apostólicos em Portugal desses anos, Luciano Angeloni e Edoardo Rovida, fizeram alguma diligência ao saber das gravíssimas acusações contra o padre Frederico e da forma como o bispo do Funchal o protegeu. Ou o que o bispo António Carrilho fez ao chegar à Madeira em relação às vítimas do padre Frederico e porque é que só afastou o padre Anastácio Alves, também acusado de abusos sexuais contra menores, 14 anos depois das primeiras suspeitas. Ou quais vão ser as iniciativas de Nuno Brás, o novo bispo do Funchal.
Até hoje, não chegou nenhuma denúncia de abuso sexual ao Patriarcado de Lisboa – que vai até Alcobaça e inclui 400 padres – e o cardeal Manuel Clemente recebeu uma única vítima. Quando há dias perguntaram à Companhia de Jesus se havia casos nas suas “obras”, a resposta de José Maria Brito foi rápida: “Em Portugal, que tivéssemos conhecimento, não.”
Fora de Portugal a conversa é outra há muito tempo. Discutem-se reformas dos sistemas penais e sanções a quem não denuncie abusos sexuais mesmo que deles tenha tido conhecimento na confissão e reformas do Código de Direito Canónico. O cânone 489 diz que, “todos os anos, os documentos de casos criminais relativos a questões morais devem ser destruídos sempre que a parte culpada tenha morrido ou tenham passado dez anos desde a condenação”. Sem respostas, sem transparência, sem querer procurar e com os arquivos destruídos dentro da sua própria casa, a Igreja Católica prepara-se para tudo perdoar e tudo esquecer.