A memória da Europa guarda-se em Florença
A cidade italiana, eleita pela academia como o centro da discussão europeia e morada do Instituto Universitário Europeu, recebeu os Arquivos Históricos da União Europeia em 1986. O segredo dos seus documentos é levantado aos 30 anos. “Estamos agora a aproximarmo-nos da queda do muro de Berlim e do Tratado de Maastricht.”
As memórias das primeiras conversações, os compromissos entre diplomatas, os esboços de futuros tratados e até alguns diários. Os bastidores do nascimento da União Europeia estão cuidadosamente preservados numa colina soalheira da Toscana, a poucos minutos do centro de Florença, à espera de serem redescobertos.
É num antigo palacete italiano, que desde 2012 serve de morada ao Arquivo Histórico da instituição, que encontramos mais de três décadas de história sobre o nascimento e crescimento do projecto europeu.
No total, a Villa Salviati reúne mais de dez quilómetros de documentação enviados pelas mais importantes instituições e movimentos europeus, como a Agência Espacial Europeia. Mas há excepções. Da lista excluem-se o Tribunal Europeu de Justiça e o Banco Central Europeu.
Nestes arquivos constam documentos tão antigos quanto a União Europeia que, à data, em 1951, nascia como Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. A ela, ano após ano, somam-se em média 12 mil documentos.
Para os consultar, é preciso descer até ao último piso do antigo palacete. O caminho é guiado por uma cronologia de fotografias que eternizam encontros entre os fundadores do projecto europeu. Degrau a degrau, os rostos de Alcide De Gasperi, Jean Monnet, Robert Schumann e Walter Hallstein acompanham-nos até um longo corredor.
Os arquivos dividem-se em salas climatizadas, acessíveis apenas através de um código, onde a humidade é controlada para garantir a conservação dos materiais ali depositados. A protegê-los estão portas de correr blindadas que se prolongam até ao tecto. Os corredores de arquivos repetem-se simetricamente ao longo de cada sala, apenas distinguíveis através da sua categorização.
“Podem imaginar a imensidão de documentos produzidos em todas as instituições”, começa por contextualizar Dieter Schlenker, director do Arquivo Histórico desde 2013, enquanto nos conduz por uma das salas.
“No final da década de 1970, com a entrada do Reino Unido, houve um novo fluxo de documentos”, continua. Foi nessa altura que o presidente da Comissão Europeia, Roy Jenkings, lançou a iniciativa de criar um arquivo.
“A um determinado ponto, a administração teve de decidir o que fazer com todos estes documentos. Foi uma decisão revolucionária”, explica o director do centro de arquivação, enquanto folheia cuidadosamente um dos dossiers guardados.
“Os arquivos foram criados quando o projecto europeu não conseguia chegar às pessoas. Surgem da necessidade de encontrar uma forma de racionalizar a administração, mas também de trabalhar a imagem do projecto europeu e da narrativa europeia, de forma forma a abrir os arquivos e disponibilizá-los ao público.”
Como a maioria dos documentos não eram públicos, mas exclusivamente internos, a Comissão Europeia nomeou um grupo de consultores para analisar a gestão de arquivos nacionais de cada estado-membro de forma a escolher uma estratégia que não colidisse com a nacional.
“A maioria dos países mantinha os seus arquivos nacionais secretos entre 30 a 40 anos. Os consultores optaram por usar o período mais curto”, explica. Por isso, todos os documentos que chegam aos arquivos chegam com um atraso de 30 anos, mas já com total liberdade para serem consultados pelo público. “Estamos agora a aproximarmo-nos da queda do muro de Berlim e do Tratado de Maastricht.”
Numa época de propagação de informação falsa, os arquivos mostram “provas documentais” que fornecem “informação real e verdadeira” aos cidadãos, sublinha. “Permitem-nos pegar num determinado momento e mostrar como ele aconteceu”, contrariando eventuais informações erradas que estejam a ser difundidas.
E é essa actualidade que é reflectida na consulta dos documentos. De acordo com as estatísticas recolhidas nas visitas feitas ao arquivo, as consultas reflectem o que está a ser discutido na actualidade. “Os arquivos institucionais são os mais consultados, mas os temas dependem do ano. Há alturas em que se nota um destaque em documentos ligados à agricultura, direitos humanos ou China”, assinala Mary Carr, uma das 16 pessoas que trabalha no centro. De nacionalidade escocesa, Mary Carr chegou ao Arquivo Histórico em 1993, como estagiária. Dali fez a sua casa. “Trabalhar no arquivo só faz sentido se se for europeísta. Estes documentos mostram mais do que memórias: mostram uma vocação”. E todos os anos, essa memória é expandida. “A maior transferência que recebemos chega do Conselho e do Parlamento Europeu. Num ano, só destas instituições chegam 20 paletes”, acrescenta o director. Já as instituições mais pequenas limitam-se a três ou quatro paletes. A viagem dos documentos dos institutos é feita todos os anos num camião que as traz à cidade italiana.
Porquê Florença?
A escolha de Florença para ser morada da memória colectiva e individual da União Europeia baseou-se na importância da cidade enquanto centro académico. “Era expectável que estivessem em Bruxelas, Luxemburgo ou Estrasburgo, algures entre as principais capitais europeias”, reconhece o director. “Optou-se por colocar estes arquivos onde já estavam os investigadores e centros de estudos europeus, onde teria um maior impacto. Foi uma decisão muito fácil, uma vez que em Florença já existia o Instituto Universitário Europeu.”
Organizadas por ordem cronológica e por instituição, as memórias da União Europeia encontram-se maioritariamente em francês. “Um pormenor que muitos se esquecem quando vêm consultar os arquivos”, assinala o director. “A língua usada nos documentos oficiais dependia também de quem era o presidente da Comissão na altura. Actualmente é mais inglês do que francês, mas isso apenas mudou com a entrada de países escandinavos, na década de 90.”
Além dos registos institucionais, o Arquivo Histórico da União Europeia tem mais de 160 arquivos privados. Entre eles, estão as memórias do antigo presidente e primeiro-ministro italiano, Alcide De Gasperi, bem como de Altiero Spinelli, dois dos “mais antigos responsáveis pelo movimento europeu e integração europeia”.
O director do centro de arquivos sublinha a importância destes registos na contextualização histórica e política. “Nos arquivos institucionais temos todos os encontros, os relatórios dos trabalhos e até alguma correspondência entre diplomatas. Mas é uma comunicação muito oficial. Os arquivos pessoais conseguem enriquecer estas memórias institucionais, porque contêm notas pessoais ao longo dos documentos. Temos até excertos de memórias em diários. São tão vastos que em alguns casos vão desde o certificado de nascimento da pessoa até aos votos de condolências, cobrindo toda a sua vida”, conta Dieter Schlenker.
“Os arquivos pessoais dão um ponto de vista, os arquivos institucionais dão outro ponto de vista e a nossa colecção histórica dá um terceiro ponto de vista. Se juntarmos os três quase conseguimos fazer um retrato completo”, afirma Mary Carr.
“A criação do projecto europeu não era só um trabalho. Nas suas raízes está a criação de paz entre os países”, lembra uma das mais antigas funcionárias da casa. E por isso, o trabalho dos arquivos é perpetuar essa vocação “tornando os documentos acessíveis através de exposições e educando os jovens nos valores da Europa.”