"Brexit!” Onde está esse entusiasmo?
O que passa por debate europeu é algo muito típico da nossa era: uma vontade de ruptura total desde que não haja disrupção absolutamente nenhuma.
“Nenhum inconveniente, apenas consideráveis vantagens!”
(David Davis, ex-ministro do “Brexit”, sobre o “Brexit").
“Brexit”, há dois anos: o frémito da mudança sem a trabalheira de ter de mudar. Ficar tudo diferente, ficando tudo na mesma. Casamento sem rotina, adultério sem culpa, embriaguez sem ressaca, sobriedade alcoolizada. Dieta de emagrecimento com pizza em todas as refeições, ginásio sem esforço, poupe dinheiro gastando. Sair de casa dos pais ficando no conforto do quarto.
Para capitalistas: uma oportunidade para destruir a conspiração socialista que é a União Europeia. Para socialistas: uma oportunidade para destruir a conspiração neoliberal que é a União Europeia e construir o afamado “socialismo num só país”. Para racistas: deixar de receber mais destes inconvenientes “migrantes” dos outros, continuando os outros a acolher os nossos pitorescos “expatriados”. Para nacionalistas: vamos controlar as nossas fronteiras, menos a única fronteira terrestre que temos, entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda. Para protestantes: vamos meter a fronteira no meio da ilha. Para católicos: vamos meter a fronteira no meio do mar. Para livre-cambistas: ficamos sem fronteira e vamos acabar com as regulações do nosso lado sem ser preciso reintroduzir inspeções alfandegárias do lado de lá. Para xenófobos: vamos reintroduzir a fronteira para combater a imigração. Para protecionistas: vamos reintroduzir a fronteira para combater o contrabando. Para terroristas: vamos reintroduzir a fronteira para voltar a disparar sobre os postos fronteiriços. Para vigaristas: vamos introduzir uma fronteira sem fricção. Tudo para todos, nada para mais ninguém.
O “Brexit”, hoje: isto é mais chato do que uma reunião de condomínio. Isto é tão picuinhas como uma discussão de estatutos na assembleia-geral da associação “Vamos Acabar com a Burocracia, Já!”. Já vos contei aquela da declaração unilateral sobre o anexo interpretativo conjunto à declaração conjunta sobre a possibilidade de interpor uma ação junto do painel arbitral previsto no acordo de saída sobre medidas alternativas ao alinhamento regulatório no quadro de um território aduaneiro único (não “a” união aduaneira nem “uma” união aduaneira, mas o equivalente a “a” e a “uma” união aduaneira) sobre a aplicação da interpretação do direito comunitário pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no caso de não se envidarem os melhores esforços para evitar o estabelecimento de controlos fronteiriços no quadro do necessário cumprimento do acordo inter-governamental, inter-partidário e inter-comunitário de 10 de abril de 1998 entre o Reino Unido e a República da Irlanda? O quê, o backstop? Sim, o backstop! Desculpa, lembra-me lá o que era o backstop? Desculpa lá, queres que eu te lembre o que é o backstop a 17 dias do “Brexit"? O quê, faltam só 17 dias para o “Brexit"?!
Pânico. Entretanto, o Parlamento britânico chumba placidamente mais um acordo de saída. E amanhã chumbará uma saída sem acordo. E depois de amanhã talvez chumbe, ou talvez aprove, uma extensão da saída. Mas entretanto a comissão europeia já disse que a 23 de maio ou o Reino Unido está fora da UE ou tem de organizar eleições europeias. Ora, os brexiteiros são de tal forma fiéis à democracia que dar ao povo oportunidade de votar, seja em novas eleições ou novos referendos, é a última coisa que eles aceitam fazer. Já não estamos em 2016, última data de validade da vontade popular!
Com tudo isto, cronistas em todo o mundo perguntam-se: como é que eu agora explico o “Brexit” aos leitores? E os leitores ainda querem saber?
Talvez não. Afinal, há só cinco milhões de pessoas dos dois lados do canal que não sabem o que fazer com as suas vidas, se ficam, se vão, ou se têm de pedir visto. Há só o desligamento de duas economias que estiveram em integração estreita durante quarenta anos, trocando cerca de quatrocentos mil milhões de euros em produtos todos os anos, e agora não sabem com que quadro legal, tarifas, ou barreiras alfandegárias vão trocar uma batata daqui a três semanas.
Há só uma geração de jovens britânicos que perdeu contra sua vontade o direito a estudar, viver, trabalhar e fazer a sua vida em 27 países europeus sem ter de pedir permissão — e uma geração de estudante europeus que pode passar a pagar propinas proibitivas em universidades britânicas sem saber que isso lhes iria acontecer. Há só gente que espera que a sua insulina ou a sua radioterapia continuem a chegar, embora não se saiba exatamente como.
Mas eu sei que a tudo isto haverá quem diga: ah, chega de alarmismo, as coisas vão continuar a ser como eram. E porquê? Porque é preciso sair da União Europeia para que tudo mude. E para quê? Para que tudo fique como era. Como antes da CEE? Não, antes disso era a guerra, preferiria voltar ao tempo em que isto era só um mercado único. Então és a favor de ficar no mercado único, como a Noruega? Eu não, não sou nenhum neoliberal, recuso-me a aceitar as regras do mercado único sem ter palavra nelas. Muito bem, és então a favor da união política? Eu não, não sou nenhum federalista, acho que cada país no seu cantinho é que era bom. Então és a favor do intergovernamentalismo? Eu não, países a decidir as coisas à porta fechada é que nem pensar. Então queres reformar a União Europeia? A União Europeia é irreformável. Então queres sair? Quero estar preparado para sair. Como o “Brexit"? Não necessariamente. Nesse caso, não vais acabar por ficar? Talvez sim, até ao fim da União Europeia. Para substituir por quê? Por uma união de países no continente europeu que cooperam para trocas comerciais, científicas e culturais, que realizam cimeiras entre si, talvez com um tribunal e um parlamento comum e um secretariado para ir gerindo as coisas, com capital em Bru… Capital em Bruxelas? Não: em Brunhosinho, Mogadouro.
De certa forma, o que passa por debate europeu é algo muito típico da nossa era: uma vontade de ruptura total desde que não haja disrupção absolutamente nenhuma. O que vale é que no entretanto os políticos que promoveram o “Brexit”, como Boris Johnson (300 mil euros por ano para escrever uma coluna semanal depois de anos a propalar mentiras sobre a UE), Jacob Rees-Mogg (7 milhões de lucro em dois anos, com o seu fundo de investimentos deslocalizado para a Irlanda, em território da UE) ou Nigel Farage (pedido de passaporte alemão feito nas semanas após o referendo, jato privado para ir a Estrasburgo “emprestado por empresário amigo”) estarão precavidos para qualquer eventualidade.
E em Portugal podemos ficar descansados: as eleições europeias costumam em geral ser muito esclarecedoras acerca do que pensam os principais candidatos sobre o tema de política do dia. Desde que não seja política europeia — que não tem, como sabemos, importância nenhuma.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico