Desmascarado novo esconderijo do VIH nos humanos
Pela primeira vez foi demonstrado que o VIH escondido em reservatórios num tipo de células do sistema imunitário (macrófagos) do aparelho reprodutor masculino pode despertar do seu estado latente e voltar a atacar. A descoberta fez-se no tecido da uretra após a análise de 20 pénis
As estratégias de eliminação do VIH têm esbarrado sempre no difícil obstáculo que são os reservatórios do vírus, escondidos no organismo e que permanecem num estado latente mesmo durante a terapia anti-retroviral à espera de uma falha nas defesas para contra-atacar. Agora, uma equipa de investigadores analisou 20 pénis, alguns de indivíduos infectados, e fez uma descoberta que pode obrigar os investigadores a repensar as suas estratégias de ataque. Na uretra, o principal reservatório de VIH estará numas células do sistema imunitário chamadas macrófagos e não nas células -alvo mais conhecidas deste vírus que são os linfócitos T, escrevem os cientistas num artigo publicado na Nature Microbiology.
É difícil a escolha das palavras certas para transmitir o genuíno entusiasmo dos cientistas sem que a frase pareça um disparate. Mas, a verdade é que a equipa do laboratório de Morgame Bomsel ficou muito empolgada quando soube que iria ter acesso a 20 pénis. Isso mesmo. “Esse trabalho só foi possível (veja que fantástico!) porque obtivemos autorização legal/ética para trabalharmos com pénis de indivíduos que passaram por cirurgia de mudança de sexo, alguns deles infectados pelo HIV”, refere ao PÚBLICO Fernando Real, investigador brasileiro e um dos autores deste trabalho. A benévola dádiva em nome da ciência compensou.
Uma análise detalhada dos tecidos do órgão sexual masculino levou-os até umas células do sistema imunitário que já se sabia que guardavam reservatórios do vírus. Não se trata desta vez dos populares e muito estudados linfócitos T mas antes dos macrófagos, grandes glóbulos brancos que respondem a infecções. Confirmada a presença de reservatórios VIH nos macrófagos da uretra, a equipa de investigadores também confirmou que o vírus ali adormecido e escondido pode despertar do seu estado latente e desencadear a sua multiplicação.
Mas os cientistas perceberam ainda que estes reservatórios não têm um papel secundário. Quando olharam para os tecidos das uretras cedidas por seropositivos que já se encontravam em tratamento anti-retroviral há bastante tempo e que, por isso, apresentavam cargas virais suprimidas, a equipa constatou que os reservatórios de VIH existiam apenas nos macrófagos e não se conseguia encontrar vestígios do vírus nos linfócitos-T (que são as células alvo na maioria das investigações sobre VIH).
Em 2018, esta mesma equipa construiu um modelo in vitro da camada mucosa da uretra para observar todos os detalhes do momento do primeiro contacto, por via sexual, entre um linfócito T infectado com o VIH e um novo hospedeiro. O resultado deste anterior trabalho, publicado na Cell Reports, foi um vídeo que mostrava uma impressionante e nítida sequência dos vários passos da estratégia de ataque na chegada do VIH a um novo organismo.
O estudo agora publicado na Nature Microbiology abre um novo capítulo. “Descobrimos que o VIH forma reservatórios virais em macrófagos da mucosa da uretra masculina de indivíduos virologicamente suprimidos pela terapia anti-retroviral combinada, estabelecendo no macrófago o principal nicho de persistência viral na uretra”, esclarece Fernando Real. O investigador explica que foram usados diferentes métodos de análise que indicaram que existia ADN viral integrado no genoma dos macrófagos e ARN viral e proteínas virais dentro de compartimentos (vesículas) no interior desses macrófagos. “Ao contrário do linfócito T, no macrófago permanecem partículas virais inteiras e prontas do VIH que ficam guardadas nesses compartimentos”, adiantou.
E nas mulheres?
E nas mulheres infectadas? Onde podemos procurá-los? “Não é o nosso modelo de estudo”, responde Fernando Real. Na tentativa de sair do exclusivo território masculino, questionámos ainda se este esconderijo do HIV nos macrófagos pode estar a ser usado noutros locais, além da uretra. Mais uma vez, o investigador brasileiro não aceita fazer grandes desvios ou qualquer especulação: “Sim, há provas que o VIH se esconde em macrófagos do fígado e do cérebro (microglia) mas ninguém havia ainda demonstrado que o VIH escondido nesses macrófagos poderia despertar do seu estado latente e retomar sua multiplicação, produzindo partículas infecciosas capazes de propagar a infecção a partir do macrófago”. E sublinha: “Essa é a nossa principal descoberta: o VIH contido nos macrófagos da mucosa genital da uretra pode ser reactivado e passar a produzir partículas infecciosas a partir do macrófago, e não de linfócitos T”. A constatação da ausência de VIH nos linfócitos enquanto se demonstra simultaneamente a presença maioritária de VIH nos macrófagos é, segundo Fernando Real, “a primeira prova em humanos de que o macrófago é suficiente para a persistência do VIH em certos tecidos”.
E agora? O que fazer com este dado novo? Será prudente incluir o papel dos macrófagos no desenvolvimento de estratégias terapêuticas eficazes, defendem os autores deste artigo. Este não será “o” esconderijo do VIH mas será seguramente “um” esconderijo que não pode mais ser negligenciado. Uma das armas que tem sido bastante explorada mas que ainda não deu resultados relevantes é o recurso a uma forma de ataque chamada “shock and kill” (Choque e Morte, numa tradução literal). Em suma, a ideia é acordar o vírus para o matar de seguida com fármacos especialmente desenhados para este objectivo. No entanto, esta estratégia terá de ser adaptada aos macrófagos porque há diferenças. Entre outras características, os macrófagos são mais resistentes a processos que são fundamentais para o êxito do método shock and kill e são também mais resistentes à acção destruidora do VIH, o que significa que acordar o vírus contido nesses macrófagos não vai necessariamente significar a limpeza do reservatório. “Há ainda a questão dos stocks virais, esses compartimentos dos macrófagos que contêm partículas virais prontas e armazenadas e nada se sabe sobre o efeito de estratégias de shock and kill nessas estruturas”, acrescenta Fernando Real.
Há, como sempre, muita coisa que ainda não se sabe. Mas este trabalho já acendeu uma luz no sombrio túnel dos reservatórios de VIH onde muitos cientistas entraram sem encontrar saída. O próximo passo da equipa de Morgane Bomsel pode ser muito útil. “Queremos encontrar um marcador, uma proteína ou factor específico, expresso exclusivamente nesses macrófagos reservatórios do VIH. Se encontrarmos essa marca definidora, podemos treinar o sistema imunológico a identificar, rastrear e destruir o macrófago reservatório especificamente.”