Primeira viagem de circum-navegação já entrou na campanha eleitoral em Espanha
Augusto Santos Silva reafirmou esta terça-feira que Portugal e Espanha estão a trabalhar numa candidatura conjunta da viagem de Magalhães/Elcano a Património da Humanidade.
Portugal está a trabalhar com Espanha na criação de um programa conjunto de comemorações do 5.º centenário da primeira viagem de circum-navegação, iniciada por Fernão Magalhães em 1519 e concluída pelo marinheiro basco Juan Sebastián Elcano em 1522, mas no país vizinho a efeméride não foge à polémica, e a reivindicação do protagonismo desta aventura marítima entrou já inclusivamente na campanha eleitoral para as legislativas de 28 de Abril.
O tema continua na ordem do dia em Espanha, desde que o jornal ABC, em Janeiro passado, acusou o Governo de Pedro Sánchez de inércia perante a iniciativa de Portugal de candidatar a viagem de circum-navegação à UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, na sigla em inglês) esquecendo, ou menorizando, segundo aquele diário, o papel que nela tiveram os espanhóis.
No dia 24 desse mês, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, anunciava em Lisboa que a candidatura da viagem a Património da Humanidade seria lançada em conjunto por Portugal e Espanha, informação que seria também corroborada pelo seu homólogo espanhol, Josep Borrell: “Espero que fiquem dissipadas todas as dúvidas ou especulações sobre a descoordenação, os desacordos, nas comemorações da circum-navegação Magalhães/Elcano”, referiu então o ministro espanhol.
Esta terça-feira, Santos Silva voltou a abordar o tema na audição perante a Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, na Assembleia da República (AR), onde classificou a iniciativa da candidatura conjunta à UNESCO da Rota Magalhães por Portugal, por Espanha e por todos os países que se quiserem associar como “uma ideia extremamente generosa, que valorizará este feito global de muita gente”. E acrescentou que as celebrações incluem “todos os países cujas nacionalidades são os membros da expedição de Magalhães-Elcano, com Espanha certamente, com o Chile, África do Sul, Cabo Verde, Filipinas, Indonésia, Timor, Bornéu, Uruguai, Argentina”.
Antes da intervenção na AR, o gabinete do MNE respondia também ao PÚBLICO que “Portugal, como vários outros países, já apresentou a lógica, os objectivos e os elementos principais das suas comemorações nacionais da viagem de circum-navegação”, remetendo para data ainda a anunciar a apresentação pública deste programa.
O gabinete do ministro dos Negócios Estrangeiros não comentou, para o PÚBLICO, o teor do relatório divulgado no passado domingo pela Real Academia da História (RAH) do país vizinho, a atestar que “é incontestável a plena e exclusiva autoria espanhola” da viagem de circum-navegação. Mas, na AR, Augusto Santos Silva esclareceu que, na sua área e no âmbito desta iniciativa, não se relaciona “com um jornal conservador espanhol, nem com a Real Academia de Espanha”, mas antes “com o Estado espanhol”.
“Relaciono-me com o Estado espanhol, através do Governo espanhol, e tenho dois interlocutores, o ministro dos Exteriores de Espanha, que visita Portugal na sexta-feira, e por presidir à comissão nacional tenho como interlocutora a vice-presidente do Governo de Espanha”, adiantou ainda durante a audição.
Também a ministra da Cultura, no decorrer de um almoço de empresários em Lisboa promovido pela Câmara de Comércio e Indústria Luso-Espanhola, considerou a discussão sobre a paternidade da viagem “uma polémica artificial”, e exortou os dois países a lutar contra os populismos.
“Há um percurso conjunto que liga Portugal e Espanha numa evolução política, económica e social, que talvez devesse levar os países a colocar os populismos e nacionalismos de parte e a falar bilateralmente sobre o que deveríamos estar a fazer para o futuro, para que o populismo e os nacionalismos não ganhem terreno”, disse Graça Fonseca, citada pela Lusa. “Talvez seja altura de discutir a importância das democracias, da comunicação social e das empresas, para que o passado não se repita”, sublinhou ainda a ministra, lembrando o contexto de campanha eleitoral que se vive nos dois países.
Debate partidário em Espanha
Do lado de lá da fronteira, o ABC voltou ao tema nos últimos dias. Na edição desta terça-feira, transporta mesmo a questão para o plano político, ouvindo e citando representantes dos vários partidos.
Com o título “PP e Ciudadanos exigem ao Governo um impulso decidido para celebrar a gesta espanhola”, o diário espanhol documenta o desacordo entre as forças políticas quanto à importância da celebração. Um porta-voz do PP no Congresso, Ricardo Tarno, lembra que foi um Governo deste partido que promoveu a criação da Comissão do 5.º Centenário, manifestando a expectativa de que, a partir de 28 de Abril, data das legislativas em Espanha, seja de novo “um Governo do PP a dar impulso às actividades que celebram esta importante efeméride para a história de Espanha e do mundo” e a manifestar “orgulho por esta gesta”.
O Ciudadanos elogia o relatório da RAH, quando este enfatiza que o protagonismo de Espanha foi “muito superior” ao de Portugal nesta volta ao mundo, mas critica tanto o PP como o PSOE por não terem feito nada para reivindicar um tema de tal importância para Espanha e “para o mundo inteiro”.
Já o Podemos desvaloriza a declaração da Academia e defende a necessidade de enquadrar a viagem no património cultural espanhol, além de, pela voz de Pablo Echenique, criticar “os falsos patriotas que enchem a boca de hispanidade enquanto protegem os abutres que se tornam milionários no [nosso] país destruindo o ecossistema”. Pelo PSOE, o diário espanhol cita uma fonte do Ministério da Cultura a contestar a ideia de a celebração do 5.º centenário ter sido uma “proposta unilateral” portuguesa, relevando também, ao contrário do que defende a RAH, que a viagem foi “uma gesta partilhada e um projecto internacional”.
Em Portugal, ouvido pelo PÚBLICO, o historiador Amândio Barros resume assim o seu distanciamento perante esta polémica: “Quando a Academia entra na política e a política entra na Academia, as coisas não resultam bem”. E menos ainda quando se quer acrescentar à leitura da história passada “nacionalismos e patriotismos” dos contextos políticos dos nossos dias. “É evidente que foi a coroa espanhola que financiou e apadrinhou a viagem, como é verdade que o Fernão Magalhães, sendo português, não foi nela o personagem mais importante, pois usufruiu também muito do conhecimento de navegadores experimentados”, acrescenta Amândio Barros, professor na Escola Superior de Educação, no Instituto Politécnico do Porto, e que actualmente integra também uma equipa formada por alguns municípios do litoral Norte do país que está a preparar um programa paralelo de comemorações da viagem. “Se o programa de comemorações trouxer um plano de estudos, investigações e publicações, muito bem; tudo o resto é folclore”, diz o historiador.
Também José Marques, o antigo presidente da Câmara Municipal de Sabrosa, autarquia que em 2017 incluiu a Rota de Magalhães na lista indicativa para a UNESCO, e actual presidente da missão para a candidatura, desvaloriza o relatório da Academia espanhola. “O documento não cria nenhum ruído. As coisas já foram devidamente esclarecidas entre os governos dos dois países, e há um trabalho conjunto e complementar que está agora em curso”, diz José Marques, remetendo no entanto para o MNE a divulgação do programa das comemorações, que passará também pelo envolvimento da Rede Mundial de Cidades Magalhânicas, uma associação actualmente presidida pela Câmara de Lisboa, e que a seguir passará a ser gerida por Sevilha.
Notícia actualizada com o acrescento das declarações do ministro Augusto Santos Silva na Assembleia da República.