Austrália, Singapura e companhias latinas suspendem Boeing 737 Max
Há mais dois países a engrossar a lista de problemas da Boeing. Registos do avião que caiu na Etiópia permitirão dizer se o 737 Max tem problemas de origem ou se faltou dar melhor formação aos pilotos desta nova geração de aviões feita nos EUA.
A lista dos países que não permitem voos no modelo Boeing 737 Max 8 duplicou. Depois da China e da Indonésia, chega a vez da Austrália e de Singapura. Nas últimas horas, também outra companhia decidiu impedir os seis aparelhos desta geração de voar. A mexicana Aeromexico, com seis aviões do género na frota, suspendeu operações com o 737 Max, “até que haja mais informações” sobre a investigação em curso à queda do avião na Etiópia, no domingo.
Também a GOL, do Brasil, e a Aerolineas Argentinas enveredaram pelo mesmo caminho, decisões que afectam mais 12 aparelhos 737 Max. No passado, estas decisões eram tomadas na sequência de recomendações do regulador responsável pela certificação do modelo, neste caso a FAA (Federal Aviation Administration), dos EUA. Mas as preocupações com a fiabilidade deste modelo estão a levar outros reguladores nacionais e companhias aéreas por si mesmas a dispensarem esta convenção.
O aeroporto de Changi, em Singapura, é o sexto mais movimentado do mundo e um importante hub de ligação para voos de e para os EUA e Europa. O regulador de Singapura alega que iria avaliar “o risco de segurança associado à manutenção das operações do Boeing 737 Max de e para Singapura”. Apesar das suspeições que agora se espalham como uma nódoa, a FAA disse na segunda-feira à noite que não tinha intenções de proibir voos naquele modelo, lançado no mercado apenas em 2017.
“Esta investigação ainda agora começou e até ao momento não temos nenhum dado que nos permita qualquer conclusão ou que nos encaminhe para qualquer tipo de decisão”, lê-se num comunicado distribuído pela FAA às companhias aéreas.
Regra geral, a chave para deslindar um acidente aéreo está nos dados de voo gravados pelas chamadas caixas negras do avião. O voo ET 302, que terminou em desastre seis minutos depois de ter começado, não será excepção. Mas a caixa negra do Boeing 737 Max 8 que se despenhou nos arredores de Addis-Abeba, na Etiópia, e que foi encontrada nesta segunda-feira, vai ajudar a responder a outras duas dúvidas: qual será o futuro deste modelo, que já tinha estado envolvido num acidente em Outubro de 2018 e qual será o futuro da Boeing?
Há neste momento quatro países não quiseram esperar pela resposta. E avançaram para suspensões temporárias como medida de prudência que, de forma colateral, aumenta a pressão para o lado da Boeing.
"O que levou este avião a cair?”
O fabrico de aviões comerciais de grande porte é um mercado que tende para um duopólio. Não é normal que o futuro de um deles seja posto em causa de forma tão rápida – até porque não há grande alternativa à Boeing ou à Airbus. Porém, o acidente que matou 157 pessoas no domingo, foi tão semelhante a outro em que morreram 189 pessoas, na Indonésia, que a resposta à pergunta “o que levou este avião a cair” vai também dizer ao mundo se a Boeing e o regulador norte-americano da aviação reagiram convenientemente ao acidente de há seis meses e se fizeram tudo o que se impunha para evitar que um tal desastre se repetisse.
As famílias dos mortos da Indonésia e da Etiópia precisam dessa resposta. E o mundo também, porque essa é a pergunta de um milhão de dólares. Ou melhor, de muitos milhares de milhões de dólares, visto que o modelo envolvido nestes dois acidentes, vendido por cerca de 44 milhões de euros cada, é (ou deveria ser) a próxima galinha dos ovos de ouro da Boeing.
Se os registos do avião que caiu perto da capital etíope conduzirem à conclusão de que a causa principal é a mesma da do voo que terminou no mar de Java, a nova geração do 737 – que é só o modelo comercial mais vendido em todo o mundo – fica desacreditada. E o fabricante norte-americano, que recebeu mais de 5000 mil encomendas do 737 (mais de metade das quais são da versão 737 Max), fica em maus lençóis.
As 350 unidades entregues até ao final de Janeiro dificilmente voltarão a voar antes de serem todas revistas, numa operação que, segundo analistas da aviação, pode custar centenas de milhões de euros à Boeing. E esta empresa sediada em Chicago, que estava a caminhar para uma produção de 57 aparelhos por mês, fica à mercê de eventuais cancelamentos de encomendas. A Boeing projectou receitas anuais de 30 mil milhões de euros com o 737 Max 8. Era a chave norte-americana para concorrer com os A320Neo do único concorrente relevante, o consórcio europeu da Airbus. Perder este influxo, ou parte dele, atiraria a Boeing para tempos difíceis. Mas, como fica claro, o cenário continua dominado por incógnitas.
Aviões em terra
A China, a Indonésia e algumas companhias mundiais decidiram não esperar pelas respostas guardadas nas caixas negras do ET 302. O regulador chinês proibiu no domingo à noite os voos com os Boeing 737 Max 8 ao serviço de 13 companhias chinesas. São 96 aparelhos que ficam em terra. A decisão, tomada de forma unilateral pela Administração da Aviação Civil da China, deve-se a preocupações com a segurança, “tendo em conta que os dois acidentes envolveram aviões Boeing 737 Max 8 recentes e que aconteceram na fase de descolagem, com algum grau de semelhança”, diz o o regulador, num comunicado.
Algumas horas depois, a Indonésia enveredou pelo mesmo caminho. A Lion Air, que perdeu um destes aparelhos em Outubro de 2018, continuava a ter 13 unidades do 737 Max na frota. É a maior low cost do país e a segunda maior da Ásia. Tinha encomendado 201 aviões deste modelo à Boeing. Continuava a ter 13 em operação que, por agora, deixarão de ser usados.
A Ethiopian Airlines, que tinha cinco 737 Max na frota (incluindo o que caiu no domingo), também suspendeu os restantes até que se esclareça se as trágicas coincidências entre os dois acidentes não passam disso mesmo. Ou se, pelo contrário, há mesmo problemas, como se discute nos meandros da aviação dos EUA desde o acidente na Ásia.
“Tudo o que se disser agora é pura especulação”, alerta Jaime Prieto, piloto de linha aérea há 22 anos. Sem o primeiro relatório, que pode demorar uma a duas semanas a sair, dificilmente se terá uma ideia se a decisão chinesa foi precipitada ou se foi a mais correcta. Jaime Prieto considera que se trata de decisões “aceitáveis”, porque “essas decisões são baseadas em diversos vectores”, incluindo o “nível de prudência” que se considera mais adequado. Uma coisa é certa: as companhias afectadas dificilmente ficarão a perder. “Se foi uma decisão errada, os operadores chineses poderão pedir contas ao regulador; se se mostrar que foi a decisão acertada, poderão pedir compensações à própria Boeing”, sublinha ao PÚBLICO.
O maior exportador dos EUA
A suspensão chinesa, entretanto alargada a outros países e transportadoras, toca numa jóia da economia norte-americana. Com 153 mil empregados, a Boeing não chega sequer à lista dos 25 maiores empregadores dos EUA. Mas, em facturação, é o maior exportador dos EUA (as receitas totais em 2018 foram de 101 mil milhões de dólares, pouco menos de metade do PIB português). E qualquer contratempo afectará a luta com a Airbus pela hegemonia mundial. E, nesta altura, condicionará a administração Trump, que encetou uma guerra comercial com a China, e que, segundo a agência Bloomberg, queria incluir um maior volume de compras chinesas à Boeing como contrapartida aos EUA num eventual acordo de paz com Pequim.
Diferentes fontes da indústria da aviação mundial, citadas na segunda-feira pela Reuters, pelo Wall Street Journal e pelo Financial Times, consideraram extemporâneo estar a proibir voos no 737 Max. Os mercados reagiram negativamente. Na bolsa de Nova Iorque, os investidores anteciparam-se a problemas. A cotação da Boeing chegou a cair 12%, fechando o dia a perder 5,33%. Para Jaime Prieto, que é comandante de uma transportadora portuguesa, são inegáveis as semelhanças entre os dois acidentes com este modelo.
MCAS, o mecanismo no centro das suspeitas
“Temos dois acidentes com dois aviões do mesmo modelo, um modelo que está equipado com um automatismo que não existia nas versões anteriores e cujo funcionamento e articulação com os pilotos foi questionada após a divulgação do relatório sobre o acidente na Indonésia”, refere. Em causa está um mecanismo chamado MCAS (Maneuvering Characteristics Augmentation System). Basicamente, explica este piloto, trata-se de um computador que processa dados de voo recolhidos por diferentes sondas do avião. Quando os dados recolhidos apontam para uma situação anómala como o risco de perda de sustentação, o computador actua automaticamente sobre o estabilizador horizontal. Essa acção no caso do voo da Indonésia foi a de fazer baixar o nariz do avião, fazendo-o descer para ganhar velocidade. Só que o computador recebeu dados errados. E com o voo na fase inicial não havia altitude suficiente para uma descida, que os pilotos não conseguiram contrariar.
Não conseguiram, ou não souberam como – essa é a razão do debate que se instalou na maior associação de pilotos dos EUA. Argumenta-se que o programa de formação das equipas que transitaram da anterior geração do 737 para o 737 Max não tiveram a formação adequada para lidar com o MCAS, que não existia nas versões anteriores. Dadas as semelhanças do segundo acidente com o primeiro, suspeita-se que terá acontecido o mesmo na Etiópia. E por isso se questiona se a Boeing, que emitiu um alerta nove dias após o primeiro acidente, para se defender, não deveria ter feito uma formação mais completa e não uma mera uma formação de ajustamento dos pilotos, com base na ideia de que se tratava de um avião da mesma família 737.