Três músicos, três produtores, um universo em expansão constante
Os Black Bombaim entregaram-se nas mãos de Pedro Augusto, Luís Fernandes e Jonathan Saldanha e deixaram que fizessem deles o que os produtores quisessem. O resultado é uma viagem intensa e surpreendente
Primeiro momento, Ciclo Católico de Operários do Porto, Dezembro de 2017. Diz agora Pedro Augusto, produtor que conhecemos enquanto Ghuna X, actualmente nos Live Low: “Interessava-me a sensação de tempo, de passagem do tempo. Como se aquela música já existisse. As pessoas chegam, vão-se embora e continua a perdurar. Um loop a que tu, enquanto espectador, acedes temporariamente”.
Segundo momento, Palácios dos Correios, Porto, Janeiro de 2018. Diz, passado um ano, Luís Fernandes, um dos fundadores dos Peixe:Avião, associado, entre outros, aos La La La Ressonance: “A minha ideia foi usá-los, literalmente, como matéria-prima. O tema principal é um tema em que eles não tocam, ou melhor tocaram para dar origem ao material sobre o qual a música está construída”.
Terceiro momento, Laboratório de Acústica da Faculdade de Engenharia do Porto, Abril de 2018. Diz ao Ípsilon, em Fevereiro do ano seguinte, Jonathan Saldanha, fundador de HHY & The Macumbas: “Eles têm uma conexão umbilical entre os três e pensei numa estratégia, quase becketiana, de constrangimento cénico. Pegar no formato deles e colocá-los num espaço cuja reverberação é tão intensa que altera a forma de tocar e de nos relacionarmos com os outros”.
O quarto momento é agora. Os Black Bombaim a mostrarem o que frutificou de três residências com três produtores, Pedro Augusto, Luís Fernandes e Jonathan Saldanha, e das consequentes actuações públicas nas datas e locais supracitados, num trabalho desenvolvido no âmbito do concurso Criatório, promovido pela Câmara Municipal do Porto para apoiar a criação artística contemporânea na cidade. O quarto momento é este: Black Bombaim w/ Jonathan Saldanha, Luís Fernandes & Pedro Augusto, duplo álbum que acrescenta mais um capítulo à história do trio nascido em Barcelos, formado pelo baixista Tojó Rodrigues, pelo guitarrista Ricardo Miranda e pelo baterista Paulo “Senra” Gonçalves.
O percurso foi iniciado há uma década e, nele, o power trio de pés no rock’n’roll e cabeça recheada de paisagens psicadélicas foi-se metamorfoseando à medida que procurava, no convívio e no contágio com outros, novos sons, novos estímulos. “Desde o primeiro disco que tivemos sempre alguém a colaborar connosco. É uma maneira de chegar a sítios que, se calhar, estão em nós, mas que se mantêm adormecidos”, diz ao Ípsilon Tojó Rodrigues. “Se não tivermos uma ideia para desenvolver, ficamos basicamente parados”, explica. Entre o final de 2017 e os primeiros meses de 2018, parados não ficaram.
Queriam tentar algo completamente diferente do que haviam feito até aqui. Quiseram entregar-se totalmente nas mãos de outros. “Pensámos em falar com pessoas que já conhecíamos e com quem já tínhamos trabalhado” para agirem como produtores. Mais que isso: “Nós seríamos as suas cobaias. Teria sempre o nosso cunho porque somos nós a tocar, mas eles seriam os master os puppets e nós os puppets”. Assim começou a nascer o sétimo álbum da discografia dos Black Bombaim. Mostra-nos uma banda em transformação, chegando onde nunca antes.
Ouvimos no disco o que aconteceu nas câmaras reverberantes do Laboratório de Acústica portuense. “É um bloco de cimento super duro, super cru”, conta Tojó Rodrigues. Gravar lá foi uma aventura. Se duas pessoas falam, o som começa a rodar, começa a doer-te a cabeça. E o que fizemos? Tudo lá para dentro e vamos tocar”. No início do processo, dissera Jonathan Saldanha à banda: “Imagino-vos com um som confinado numa estação espacial que viaja para os confins do universo”. Instalados nas câmaras reverberantes, recorda o produtor: “Tínhamos uma sensação de mastodontes a atravessar os nossos corpos, o que alterava o nosso método de tocar. [A adaptação] Demorou algum tempo, mas depois encontrámos uma linguagem partilhada”. Ouvimos, então, os 23 minutos de Zone of resonant bodies. Um som misterioso reverberando no vazio, tarola e timbalão unidos à nota do baixo enquanto não chega a guitarra que evoluirá do eco subliminar ao lento fervilhar. Se esta é a banda que conhecíamos, e é, só o perceberemos mais tarde, quando os intervalos de silêncio se forem reduzindo e reduzindo até a termos perante nós, imensa, como se tocada por seres gigantescos numa gigantesca galeria de caverna.
Ouvimos o que fizeram os Black Bombaim com Pedro Augusto, conhecido de longa data (foi o responsável pela masterização de Saturdays And Space Travels, o primeiro álbum da banda). “Apesar de eu trabalhar quase tudo com electrónicas e eles serem do rock pesado, a sonoridade a rasgar, o tempo muito lento e as dinâmicas muito fortes eram semelhantes”, conta o produtor. Explica o processo criativo: “Trouxe processos do teatro e da dança [em que desenvolve também o seu trabalho], a residência, a repérage”. Neles, incluiu-se, por exemplo, “uma visita com o Senra à oficina do [baterista e compositor] João Pais Filipe”. Pedro Augusto queria, com isso, estimular uma outra forma de abordar o instrumento. “O Pais é quase uma caixa de ritmos, em que tudo tem o mesmo volume e intensidade”. Depois desse trabalho, chegou a vez de abordar o baixo e a guitarra: “Pegou no conceito e repetição e monotonia, no sentido dos Can”, resume Tojó. Ouve-se, por fim, o resultado de todo o processo, os 14 minutos de Three axes. O ritmo é incessante, contínuo, som seco que é bateria mas podia ser percussão primeva de origem incerta. Suportado pelas notas esparsas do baixo, decorado com a guitarra que se multiplica em espirais abstractas ou acordes no ponto certo do groove, o ritmo há-de induzir o seu transe – e imaginamo-lo vivido tanto por eles, quem toca, como por nós, os que ouvimos.
Ouvimos no disco o que resultou do trabalho com Luís Fernandes, os 11 minutos de Refraction. Uma maré de feedbacks que se organiza como mancha sonora em mutação, qual onda em movimento certo da sua incerteza, e a forma como se esse ruído eléctrico se transforma em vaga sintetizada. Os instrumentos estão lá sem estarem lá verdadeiramente. São a matéria de que se faz aqui esta kozmische musculada e assemelham-se a espectros a assombrar o som que nos rodeia. “Peguei em diversos elementos da música deles e gravámos guitarras em feedback, ebows, linhas de baixo ‘arpegiadas’”, explica Luís Fernandes. A partir daí, desenvolveu uma peça de música generativa com esses elementos, utilizando técnicas da música electro-acústica de Xenakis ou Stockhausen – “mas em vez de trabalharmos com osciladores, usámos sons pré-gravados da banda”. Na apresentação no Círculo Católico Operário do Porto, Luís Fernandes surgiu primeiro sozinho no meio da sala, público a rodeá-lo e a ser, por sua vez, rodeado pelo som produzido. Depois, chegaria a banda para se juntar, viva e presente, aos espectros ressoando em bordão - isso são os cinco minutos de 20180224, a segunda peça no álbum assinada com Luís Fernandes (cada produtor assina duas, ou seja, também há 20171216, com Pedro Augusto, e 20180415, com Jonathan Saldanha).
Tudo reunido, que ainda não é tudo – ainda chegará este ano um filme de Miguel Filgueiras, com argumento de Manuel Neto, baseado livremente nos concertos e residências -, temos os Black Bombaim e três produtores a dirigi-los por caminhos inexplorados. Inesperado, mas muito de acordo com a personalidade da banda que, disco lançado a 8 de Março, iniciou uma digressão que passará dia 16 pelo Bang Venue, em Torres Vedras, dia 30 no GrETUA, em Aveiro, e, depois de uma curta digressão europeia (de 6 a 13 de Abril), no gnration, em Braga (dia 18 de Abril).
“Lembro-me da sensação de euforia que a música deles provocava”, recorda Jonathan Saldanha. Está a recuar ao momento em que primeiro se deparou com os Black Bombaim. “Apesar de ser um formato altamente reconhecível e já muito tocado, tinha uma dinâmica que me parecia muito particular, com o seu grupo de regras, de texturas, de lógicas”, continua, antes de sentenciar: “Tinha tudo para ser uma banda rock, mas, no fim, não é”. O mentor de HHY & The Macumbas, que editaram no final de 2018 o seu segundo álbum, esse xamânico laboratório de ritmos e feitiçarias intitulado Beheaded Totem, toca no ponto que o novo álbum ilustra.
A banda que se estreou em 2010 com o space rock vertiginoso de Saturdays And Space Travels, psicadelismo instrumental de intensidade punk, tem o rock’n’roll no seu âmago, mas a designação já não a contém. O percurso que fizeram desde esse longínquo 2010 não deixa dúvidas quanto a isso. Daí para cá, os Black Bombaim chamaram até si, em Titans (2012), Adolfo Luxúria Canibal, Steve MacKay, o lendário saxofonista que associamos aos Stooges, ou Isaiah Mitchell, dos Earthless – forma de encontrar novos rumos nos temas compostos a três. Dois anos depois, convocaram o saxofone de Rodrigo Amado e os sintetizadores de Luís Fernandes para, em conjunto, moldarem novas formas nas duas peças que compunham Far Out – e, nesse mesmo ano, transformaram-se em super banda ao reunirem-se aos La La La Ressonance para exploração conjunta.
Quando, em 2016, se soube que iriam reunir-se ao veterano mas muito vivo Peter Brötzmann, o homem do saxofone endemoninhado de Nipples (1969) e nome indispensável do free jazz europeu, a associação não pareceu inteiramente surpreendente. Os Black Bombaim já tinham caminhado muito desde Saturdays And Space Travels e tanto o prazer pela descoberta quanto a ferocidade da abordagem musical, perceptível nos seus concertos sem rede, encontrava reflexo na atitude de Brötzmann. Mais surpreendente terá sido o percurso do admirável álbum resultante do encontro, Black Bombaim & Peter Brötzmann, que acabou referido na revista Wire ou na secção de jazz do site Stereogum como um dos destaques do ano.
Muito se expandiram as fronteiras que delimitam a música dos Black Bombaim, e não parece haver forma de se fixarem de forma duradoura. Black Bombaim w/ Jonathan Saldanha, Luís Fernandes & Pedro Augusto é o resultado de um laboratório de criação, é uma banda a entregar-se na mão de marionetistas talentosos, perfeitamente conscientes que controlam músicos com vontade própria e personalidade vincada, para prosseguirem neste contínuo processo de expansão do seu universo. “Às vezes é bom fechar os olhos e acordar em Marte”, dirá Tojó Rodrigues a meio da conversa com o Ípsilon. “Como soará o rock’n’roll em Marte?”, pergunta então. Desconhecemos, mas gostávamos de descobrir. Os Black Bombaim que comecem a pensar nisso.