Ressurge a peste do anti-semitismo
O regresso do "velho anti-semitismo" é um fenómeno europeu, particularmente em França, onde os "actos de ódio" cresceram 74% em 2018. O que marca a actualidade é a sua expressão dentro do movimento dos Gilets Jaunes.
A França volta a debater-se com um dos seus “velhos demónios”, o anti-semitismo. É um fenómeno secular que vai mudando de pele, consoante os tempos e as sociedades, mas volta sempre. Há 20 anos, falava-se de “judeofobia”, hoje é patente o regresso do “velho anti-semitismo” de extrema-direita.
Começo por relembrar alguns factos. Em 2018, os actos de anti-semitismo em França cresceram 74%. Passaram de 311, em 2017, para 541. Mais graves do que os números são a “ameaça existencial” e as ideias mortíferas que eles exprimem. “O anti-semitismo espalha-se como um veneno e como um fel. Ataca, apodrece os espíritos, assassina”, declarou Christophe Castaner, ministro do Interior, com a ressalva de que na maior parte dos casos não são apresentadas queixas.
O fim-de-semana de 9 e 10 de Fevereiro foi um marco. Em Paris, dois retratos de Simone Veil, antiga ministra e sobrevivente de Auschwitz, foram pintados com suásticas e a palavra juden (judeu em alemão). “Aqui, os muros das ruas são cobertos com cruzes gamadas, acolá escreve-se a palavra juden, nas redes sociais espalham-se slogans saídos do caixote de lixo da História”, escreveu o Le Monde em editorial. “Em certos bairros, os judeus têm de sofrer o ‘anti-semitismo do quotidiano’, um assédio constante, os insultos e as ameaças que tornam a vida odiosa. Mas, meses depois, o ódio liberta-se, as inibições cedem e passa-se aos actos.” Circulam nas redes sociais slogans funestos como “A França aos franceses” ou “Morte aos judeus”. Macron é associado ao judeus por ter trabalhado no Banco Rothschild.
A França não tem o monopólio da peste anti-semita. Para só falar da Europa, houve uma intensificação dos “actos de ódio” em relação aos judeus. Na Alemanha, fontes governamentais apontam mais de 1648 acções em 2018, um pico nos últimos dez anos. Na Grã-Bretanha, a ONG judaica CST regista 1652 casos, um aumento de 16% em relação ao ano anterior. Na Suécia, a extrema-direita organizou os primeiros ataques anti-semitas desde a II Guerra Mundial. Um inquérito da UE, junto de mais de 16 mil judeus de 12 países europeus, indica que 90% deles têm a percepção de que o anti-semitismo cresceu nos seus países e 30% reconhecem já terem sofrido agressões racistas.
O momento da “Judeofobia"
Em Abril de 2018, 250 personalidades de vários quadrantes publicaram um manifesto denunciando o “novo anti-semitismo”. O adjectivo “novo” aponta para um antijudaísmo ligado ao islamismo e à esquerda radical anti-sionista. Esta ideia foi reforçada após o 11 de Setembro, a Segunda Intifada palestiniana (2000-2005) e as ofensivas israelitas em Gaza, quando houve surtos de manifestações anti-sionistas.
O investigador Pierre-André Taguieff, estudioso do racismo, publicou em 2002 o livro La Nouvelle Judéophobie, em que lançava um alerta para a expansão de um novo tipo de anti-semitismo. Para o autor, os termos tradicionais “anti-semitismo/anti-semita” pareciam já “inaptos para permitir uma conceptualização fecunda das manifestações antijudaicas actualmente observáveis no mundo”. A nova judeofobia (um termo herdado do fim do século XIX) alia anti-sionismo e islamização, a que se junta, como pano de fundo, um terceiro-mundismo revolucionário.
Nestes termos, se o velho anti-semitismo era de direita, a nova judeofobia seria de esquerda. Os defensores desta tese argumentavam que as sondagens confirmavam a estagnação do anti-semitismo de extrema-direita.
Esta interpretação está ainda enraizada e é dobrada por razões político-diplomáticas. Emmanuel Macron anunciou no dia 20 de Fevereiro que a França vai tornar oficial, tal como a UE e os Estados Unidos, a definição do anti-semitismo adoptada pela Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, que afirma que “o anti-sionismo é uma das formas modernas do anti-semitismo”. É uma decisão controversa mas que não pode ser aqui analisada.
Os Gilets Jaunes
Os últimos anos, com os surtos populistas, nacionalistas e xenófobos, induziram nova viragem. Mas esta, apesar de múltiplos sinais, sobretudo na Internet e nas redes sociais, apenas se tornou evidente com a eclosão do movimento Gilets Jaunes e com um crescendo de cartazes e palavras de ordem anti-semitas. E, ponto crítico, com a virulento agressão verbal ao filósofo Alain Finkielkraut. A extrema-direita infiltrou as suas manifestações e, a pretexto das suas reivindicações e dos momentos de violência, fez avançar as suas ideias.
“O Movimentos dos Gilets Jaunes não é anti-semita, mas produz um contexto propício à expressão de um anti-semitismo profundamente enraizado”, declara o sociólogo Pierre Birnbaum, investigador do anti-semitismo. Vale a pena citar dois parágrafos: “Os quadros da democracia representativa são refutados porque são considerados como estando nas mãos de uma elite. Por oposição, o povo é pensado como virtuoso, puro, inocente de qualquer compromisso com o poder do dinheiro e [por isso] o movimento reivindica para ele a aplicação da democracia directa. É neste contexto que os preconceitos anti-semitas, que existiam antes desta vaga e continuarão a existir, são reavivados e exprimidos. (…) Os grandes momentos anti-semitas são, na França, períodos em que se contesta ao Estado a sua legitimidade.”
Note-se que 60% dos franceses associam os judeus ao dinheiro e que cerca de 30% consideram que eles têm demasiado poder. E 44% dos Gilets Jaunes acreditam numa “conspiração judaica internacional”. Estes não são temas de esquerda, são temas de direita, ancorados numa longa tradição histórica.
A extrema-direita
O anti-semitismo francês surge como uma amálgama. Fréderic Porier, delegado interministerial para a luta contra o racismo, o anti-semitismo e o ódio anti-LGBT, fala na amálgama de duas correntes: “Há um anti-semitismo que vem do islamismo e que continua poderoso, mas o que é novo e alimenta a vaga anti-semita de 2018 é o ressurgimento de uma extrema-direita muito virulenta, nas suas palavras, nos seus actos e não só.”
Anota o sociólogo Michel Wieviorka que o manifesto dos 250 “passa ao lado do velho anti-semitismo de extrema-direita”. Este nunca desapareceu. “Para lá do ‘novo anti-semitismo’, que não se deve subestimar, as mais recentes e mais concretas expressões do anti-semitismo têm muito a ver com a explosiva mistura da relegitimação da violência no espaço público e com uma ruptura sociológica da população.”