Conseguiremos comer menos 85 gramas de carne por dia?

Este seria o valor ideal para que a dieta dos portugueses se aproximasse do que foi considerado a alimentação justa para “salvar o planeta”. Feitas as contas, significa passar de um consumo diário de carnes vermelhas para passar a comê-las apenas uma ou duas vezes por semana. Olhamos para a nossa alimentação neste último trabalho de uma série sobre o impacto dos bovinos na nossa vida.

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Enric Vives-Rubio

Em média, um adulto em Portugal consome perto de 100 gramas de carnes vermelhas por dia. De acordo com um estudo da revista científica Lancet divulgado em Janeiro, para que seja possível a população mundial alimentar-se no futuro e, ao mesmo tempo, salvar o planeta, garantindo a sua sustentabilidade, cada pessoa deveria comer um máximo de 28 gramas por dia – e, idealmente, uma média de apenas 14 gramas diários.

“Isto significa passar de um consumo de carne a um ritmo diário para uma ou, no máximo, duas refeições por semana”, diz Duarte Torres, investigador da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto, que, a pedido do P2, analisou os dados, comparando o consumo em Portugal com as metas do relatório da EAT-Lancet, feito por uma comissão de 37 especialistas internacionais de 16 países. A conclusão? Os portugueses teriam que reduzir de forma muito considerável a quantidade de carne vermelha que comem (e aqui inclui-se, seguindo a lógica da Lancet, vaca, borrego e porco).

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Partindo dos dados do Inquérito Alimentar Nacional e de Actividade Física (IAN-AF, de 2015/16), Duarte Torres analisou o consumo em Portugal de carnes vermelhas, incluindo charcutaria e outras carnes processadas, e chegou aos seguintes números: para a população em geral são 88,2 gramas diários; crianças (dos 3 meses aos 10 anos), 54,6 gr.; adolescentes (dos 10 aos 18), 95,2 gr.; adultos (18 aos 65) 97,3 gr.; e idosos 64,4 gramas.

Se tivermos como referência os tais 14 gramas diários aconselhados, constatamos que os portugueses consomem, todas as categorias incluídas, 98,3% de carne vermelha a mais. No caso dos adolescentes, e adultos, essa percentagem atinge os 99,5%. Note-se que estes números incluem a carne de porco — se ela for retirada da equação e se se considerar apenas vaca e borrego, os valores descem bastante e, em gramas, passamos, na população em geral, para um valor de 34,9 por dia.

De qualquer forma, uma coisa parece clara para o investigador: “Necessariamente, por várias razões — de saúde, de sustentabilidade —, devemos caminhar para uma redução gradual do consumo de carne.” E, em Portugal, “ainda não existe uma estratégia definida para isso”. O que existe, para já, é, nos cenários para o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, um plano para uma redução de 20 a 30% do actual efectivo bovino do país, que é de cerca de 1,3 milhões de vacas. 

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Duarte Torres considera que, a partir dos dados a que chegou, já é possível iniciar um debate sobre o que fazer a nível do consumo. “Os agentes políticos devem começar a pensar nisto. Vamos até onde? Os 28 gramas diários como limite máximo parecem-me um bom objectivo a médio/longo prazo, mas implicam uma alteração muito profunda nos hábitos e não se consegue isso de um momento para o outro.”

Não é um defensor de uma dieta em que se abdique completamente da carne. “Nos regimes muito restritivos, há um aumento do risco de algumas carências”, avisa. “Isto pode não ser um problema para um indivíduo adulto bem informado, mas em crianças, nas quais a taxa de renovação e crescimento está muito activa, as carências podem ter consequências severas.” Daí que, na sua opinião, “os benefícios de uma redução significativa do consumo de carne não aumentam num cenário de corte total” com este alimento.

Alterações à Roda?

Dito isto, é importante que se comece a trabalhar na sensibilização da população para o tema. Uma boa forma de o fazer, acredita o investigador, será introduzir algumas alterações da Roda dos Alimentos, que serve como referência relativamente ao que devemos comer e em que quantidades. “É um instrumento que foi criado aqui, na Faculdade de Ciências da Nutrição, e que tem vindo a ser actualizado”, lembra.

Neste momento, o consumo de carne aconselhado na Roda dos Alimentos é ainda superior ao recomendado no relatório da Lancet — embora seja preciso ter em conta que, na Roda, a carne aparece agregada num grupo com o peixe e os ovos, o que dificulta as comparações.

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Vai ser preciso duplicar o consumo global de fruta, vegetais e frutos secos e diminuir em mais de 50% o consumo de produtos como as carnes vermelhas e o açúcar Nuno Ferreira Santos

Aí, o que se recomenda é um consumo médio diário (dos três ingredientes) entre os 40 e os 110 gramas — que implica já uma redução relativamente ao que é a média real de 174 gramas por pessoa e por dia de carne, peixe e ovos. O que é claro é que “a maioria da população consome acima do limite máximo da Roda dos Alimentos”, resume Duarte Torres. Sendo que, se levarmos em conta as preocupações dos peritos da Lancet, mesmo esse limite terá agora que ser revisto.

A grande novidade que o relatório da Lancet introduz tem a ver com a forma como se olha o problema: a dieta dos humanos deixa de ser pensada apenas em termos do seu impacto na saúde e passa a ser analisada também em função das suas consequências — positivas ou negativas — para a sobrevivência do planeta. Nos pratos da balança estão questões vitais: em 2050 vai ser preciso alimentar 10 mil milhões de pessoas e isso tem que ser feito sem provocar uma catástrofe ambiental, que eventualmente, poderá levar o mundo à fome. Como se resolve o dilema?

Vai ser preciso duplicar o consumo global de fruta, vegetais e frutos secos e diminuir em mais de 50% o consumo de produtos como as carnes vermelhas e o açúcar. Um prato ideal deve, assim, ser composto da seguinte forma: metade por vegetais e fruta, e a outra metade por cereais integrais, proteínas vegetais, gorduras vegetais (como o azeite) e uma pequena quantidade de proteína animal (algo que, nota Duarte Torres, corresponde já à composição de muitos dos pratos da Dieta Mediterrânica).

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O sistema da Terra

O relatório da Lancet debruça-se também sobre a produção, propondo limites para o que, a nível planetário, deve ser produzido “para reduzir o risco de alterações irreversíveis e potencialmente catastróficas para o sistema da Terra”. É preciso, aqui, ter em conta as emissões de carbono e as suas consequências para as alterações climáticas; o uso da terra para produção em larga escala de cereais (muitos dos quais são usados para alimentar animais), o uso dos recursos hídricos, a perda de biodiversidade, entre outros factores.

Actores importantes aqui, para além obviamente dos produtores, são os cozinheiros e os chefs de cozinha. Alexandre Silva, que tem o restaurante Loco, em Lisboa, com uma estrela Michelin, prepara-se agora para abrir o Fogo, um espaço especializado na cozinha feita no fogo — que inclui a carne, mas também peixe, marisco e legumes.

Alexandre, que tem também um restaurante no Mercado da Ribeira, em Lisboa, diz que aí serve 80% de peixe e 20% de carne e tem notado uma tendência para alguma diminuição do consumo de carne pelos clientes. No conjunto dos três restaurantes, a sua preocupação tem sobretudo a ver com o evitar o desperdício — outro dos objectivos em destaque no relatório da Lancet — pelo que tenta sempre que possível comprar animais inteiros e aproveitar de formas diferentes as várias partes. É, explica, uma forma de fugir à excessiva valorização que habitualmente é feita das chamadas “partes nobres”, como o lombo ou a vazia.

Mas centremo-nos de novo na questão do consumo e do que se pode fazer nesse extremo da cadeia. José Camolas é nutricionista, especialista em doenças metabólicas e de comportamento alimentar e está ligado ao Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável da Direcção-Geral da Saúde. Também ele usa a Roda dos Alimentos como referência, neste caso para sublinhar a discrepância com a realidade: “As porções habitualmente servidas em Portugal são o dobro do recomendado, muitas vezes com bifes de 200 ou 250 gramas.”.

A mais recente versão da Roda coloca as leguminosas ao lado do peixe, carne e ovos. “São óptimas fontes de proteína, com quase tanta por unidade de peso como a carne ou o peixe.”. Mas, atenção, não estamos a falar de fontes de proteína exactamente iguais. “As leguminosas têm algum desfasamento em termos de qualidade biológica. O valor biológico de um alimento refere-se aos aminoácidos essenciais e na proporção ideal para o ser humano e aí os animais têm uma afinidade biológica maior e, portanto, um valor mais alto. As proteínas vegetais são de médio ou baixo valor biológico, mas este pode ser aumentado combinando-as, por exemplo, com cereais.”

Tal como Duarte Torres, José Camolas diz que “não se pretende a restrição total da proteína animal”. O desejável é que “quando pensamos nas necessidades proteicas do ser humano, metade venha de uma fonte de origem vegetal”. Olhemos então para algumas leguminosas: o feijão, por exemplo, tem cerca de 6,6 gramas de proteína por cada 100 gramas, valor que no caso do grão é de 8 gramas, aproximadamente.

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Carne por grão e feijão Fábio Augusto

Estes valores significam que a percentagem de proteína é de cerca de 7%, enquanto na carne ela pode situar-se entre os 20 e os 30%. Ou seja, 100 gramas de feijão correspondem a um terço das proteínas de 100 gramas de carne. O importante, conclui o nutricionista, é ter em conta estes valores e conseguir um prato equilibrado, “usando a leguminosa como fornecedor tanto de hidratos de carbono como de proteína e reduzindo a quantidade de proteína animal.”.

Façamos mais algumas contas com a ajuda de José Camolas: “Estima-se que um adulto precise de 1 grama de proteína por cada quilo de peso. Se pesar 70 quilos, precisa de 70 gramas diários. Se consumir 120 gramas de carne, ela vai dar-lhe aproximadamente 30 gramas de proteína. Faltam 40, que podem ser obtidos através da proteína vegetal e assim conseguimos reduzir em 40 gramas diários o nosso consumo de proteína animal, o que já terá um impacto muito grande ao fim de um ano.”

Apesar de muito conservador tendo em conta as metas propostas pela Lancet, este cenário poderá ser mais realista para um país como Portugal neste momento. Quanto à adopção de uma dieta vegetariana, Camolas avisa que ela “implica uma literacia nutricional um pouco mais elaborada” e que é preciso uma especial atenção sobretudo a dois pontos: as necessidades de ferro, particularmente nas mulheres em idade fértil, e a vitamina B12 que tem que ser tomada em suplemento.

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Para Duarte Torres, investigador da Universidade do Porto, devemos caminhar para uma redução gradual do consumo de carne, não só por razões de saúde, mas também de sustentabilidade Catherine Ledner/Getty Images

Neste aspecto, o mundo move-se a duas velocidades, analisa Duarte Torres: “Há países em que um consumo muito elevado de carne está associado a um bem-estar e outros em que, pelo contrário, são as pessoas mais instruídas que passam a comer menos carne. Estamos a viver no mesmo planeta vários momentos e o simbolismo da carne é diferente de um país para outro.” Portugal está num ponto intermédio. Se “há 40 anos o consumo regular de carne foi uma conquista numa sociedade de pobreza muitas vezes extrema”, neste momento há sinais que apontam noutra direcção. E, sem dúvida, a partir de agora “as questões ambientais vão passar a estar em cima da mesa”.

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