Macron escreve errado por linhas direitas
A maneira de resolver os nossos problemas é alargar a redistribuição e a concessão de bens públicos à escala europeia.
Começo por falar-vos da Geração de Erasmus. Não da Geração Erasmus, a de hoje, mas a de Erasmo de Roterdão propriamente dito. A geração de 1500.
Ao contrário do que é por vezes erroneamente repetido, o primeiro estado social não é a nação, mas sim o concelho ou o município do Renascimento. Foi por esta altura que cidades holandesas e flamengas como Leiden ou Antuérpia começaram a experimentar dar aos seus pobres subsídios não-caritativos que lhes permitiam recuperar a dignidade, sair da miséria e reencontrar a capacidade de trabalho.
Estas cidades tinham dinheiro suficiente para o fazer, mas descobriram que reunir recursos para este esforço de erradicação da pobreza acabava por ser benéfico para toda a economia e a sociedade locais. Em vez de esmolas, essas comunidades estabeleciam conselhos que geriam dinheiro público para ajudar os pobres e, na prática, erradicar a miséria à escala local.
Isto significa que, em vez de cederem ao receio egoísta de que uns vivessem à conta dos outros, os citadinos flamengos e holandeses do Renascimento perceberam que o estabelecimento de uma rede de segurança permitia a todos trabalharem pelo bem comum, aumentando assim a coesão das suas comunidades. E atenção: não era só nos Países Baixos que estas ideias corriam.
Pela mesma época o humanista ibérico Juan Luís Vives escrevia, no ano de 1526, uma obra sobre a erradicação da pobreza através da atribuição de subsídios de sobrevivência a que deu o título latino De Subventione Pauperum ou, em castelhano, Tratado del Socorro de Pobres.
Passado pouco tempo, porém, houve uma consequência involuntária. A implementação destas medidas atraía os pobres das cidades vizinhas, de modo que Erasmo de Roterdão chega a inventar, numa das suas Conversas Familiares (Colloquia familiaria, de 1518), um diálogo entre dois pobres que se queixavam de entraves à liberdade de circulação “porque agora cada cidade quer manter só os seus pobres e não receber os das outras”.
Ou seja: descobriu-se ali a ligação entre redistribuição e migração. Se as pessoas migram à procura de melhor vida, há dois tipos de resposta: uma que funciona (alargar a redistribuição) e outra que não funciona (limitar a liberdade de circulação).
A prazo tornou-se claro que a solução para as migrações de pobres entre cidades neerlandesas não estava em introduzir passaportes para impedir as pessoas de andar de cidade para cidade — o que acabaria por prejudicar a vida de todos e fragmentar a economia regional — mas em alargar a concessão de bens públicos, criando assim um novo círculo mais amplo de coesão social. Passados vários séculos, as políticas de apoio e bem-estar social cresceram finalmente de forma sistemática à escala do estado-nação.
E aqui chegamos à carta que o presidente francês Emmanuel Macron enviou a 500 milhões de cidadãos europeus, publicada em jornais de todos os 28 países da UE. Não é todos os dias que um gesto destes acontece, e não é natural que o deixemos passar sem debate.
Macron acerta numa coisa grande — a escala europeia — e falha, do meu ponto de vista, nas restantes coisas — ou seja, o que fazer com a escala. Ao invés de “escrever direito por linhas tortas”, Macron acaba por escrever torto por linhas direitas.
Em que acerta Macron? Nisto: a escala dos problemas não é opcional. Se nos desfizermos da União Europeia, os problemas que temos à escala continental e global não ficam mais pequenos só porque decidimos que agora só trabalhamos à escala nacional.
Nem a crise ecológica passa a respeitar fronteiras, nem os paraísos fiscais desaparecem, nem os países deixam de pedir dinheiro emprestado uns aos outros e a instituições internacionais. O mais provável é que acabássemos a ter de reconstruir uma espécie de União Europeia, perdendo tempo precioso de que nesta fase da história não dispomos.
Em que falha Macron? Falha porque ainda não percebeu o falhanço do neoliberalismo. Isto, é claro, é matéria de opinião minha, com que o leitor não tem de concordar. Mas que aponta para uma realidade política: numa leitura desapaixonada, a União Europeia é apenas um terreno de jogo político. Se a direita, os neoliberais e até os neofascistas jogarem nele, mas a esquerda decidir num capricho deixar de ir a jogo, é natural que o resultado saia desequilibrado.
E isso é mau para todos, porque a descoberta da Geração de Erasmus (a de 1500) continua a valer para a Geração Erasmus (a de agora): a maneira de resolver os nossos problemas é alargar a redistribuição e a concessão de bens públicos à escala europeia.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico