Al Gore lembra-nos que as grandes causas foram primeiro recebidas com um não
Antigo vice-presidente dos EUA comparou o combate às alterações climáticas à luta pelos direitos das mulheres e pelo fim da escravatura, que também enfrentaram forte oposição.
Combater as alterações climáticas implica uma mudança cultural na forma como encaramos o nosso papel no planeta, e se a onda de negacionismo que, em vários lugares do mundo, ameaça desacelerar os esforços globais para travar as emissões de gases com efeito de estufa levanta receios de um falhanço colectivo, Al Gore faz questão de lembrar, parafraseando o poeta norte-americano Wallace Stevens, que as outras grandes causas da humanidade foram todas recebidas com um não, antes de serem aceites.
Dos direitos das mulheres – que esta sexta-feira se celebram em muitas partes do mundo – à escravatura ou ao fim da discriminação em função da orientação sexual; nada foi conseguido sem se ultrapassar, primeiro, um muro de oposição, política, social e, para o caso que levou o antigo vice-presidente dos EUA ao Porto, o combate às alterações climáticas, sem uma tremenda oposição económica, insistiu, quase a terminar uma intervenção de cerca de uma hora. E para Al Gore, os dados em cima da mesa não deixam dúvidas: “O futuro e a qualidade de vida dos nossos filhos dependem da nossa capacidade de deixarmos de usar o mar e o céu como esgotos a céu aberto”, e de mudarmos a forma como produzimos e consumimos os bens e serviços de que necessitamos.
Orador principal da Cimeira Climática do Porto, o homem que tem passado os últimos anos a dar formação a líderes climáticos por todo o planeta, e que em 2017 mostrou parte desse trabalho no documentário Uma Sequela Inconveniente: A verdade ao Poder, mostrou que continua a ter fé na humanidade. Perdeu pouco tempo a falar de Trump – o “instável presidente” do seu país – mas parou, e juntou as mãos, em jeito de oração, quando lembrou à audiência que enchia o Centro de Congressos da Alfândega que, se os norte-americanos elegerem um novo rosto para a Casa Branca, os Estados Unidos poderão nunca chegar a sair do Acordo de Paris, já que a decisão tomada pelo actual líder só terá efeitos no dia a seguir às eleições.
Sem um diapositivo animado para mostrar o grau de “instabilidade” do actual homem forte da América, a Al Gore não lhe faltam, neste tipo de apresentações, os habituais slides com que tenta convencer a audiência da instabilidade a que submetemos alguns dos sistemas responsáveis pelo equilíbrio climático do planeta, e do “sarilho” em que estamos metidos se não acelerarmos as alterações estruturais da economia mundial que a ponham a funcionar sem combustíveis fósseis. O público viu o apocalipse em formas de cheias, furacões, incêndios ou secas – que se tornaram quatro vezes mais frequentes desde a década de 80, insistiu – mas nesta viagem àquele que em inglês se chama, textualmente, o “Livro da revelação”, mais do que o fim do mundo, Al Gore preferiu dar nota de que há inúmeros sinais de esperança.
Transição energética em aceleração
Num evento organizado pelo sector dos vinhos, e antecipando que entre a plateia estaria muita gente ligada aos negócios, Al Gore preocupou-se em mostrar números: de um planeta em que o investimento em energias renováveis ultrapassou, em 2013, os investimentos em energias fósseis, e em que o fosso entre os milhões de dólares que se gastam num e noutro sector se agiganta, a cada ano que passa; de um planeta em que as previsões de aumento da capacidade instalada de energia solar e do vento foram esmagadas, positivamente, pela realidade; de um planeta que, ano após ano, aproveita melhor a sua estrela mais próxima, essa que, numa hora, “nos entrega a energia que a economia mundial necessita para um ano”.
Da China aos próprios EUA, passando pela Índia, pela Alemanha e claro, por Portugal, cujo esforço de transição energética Al Gore elogiou - com uma vénia ao ministro do Ambiente, outro dos oradores desta tarde – não faltaram assim, em contraponto ao prenúncio do desastre, exemplos de como a economia mundial já percebeu onde é que cada dólar será mais rentável nos próximos anos. E se essa é a forma de convencer uma maioria de pessoas a agir, mais do que por insistentes apelos ao amor pelo planeta, a “urgência” do momento não deixa espaço para hesitações morais. O crescimento tem de passar a vir acompanhado do adjectivo “sustentável”, mas para quem tenha medo de que isso signifique pior desempenho económico, e desemprego, não faltaram estatísticas sobre os postos de trabalho que estas novas industrias vêm criando. Até nos EUA, vincou.
Al Gore foi o último orador de uma tarde que abriu com o exemplo enorme do advogado indiano Afroz Sha, que não esperou pela acção dos seus líderes políticos – locais ou nacionais – e organizou, a partir de 2013, aquela que foi considerada a maior limpeza de praias em Bombaim, mobilizando milhares de voluntários. E o americano que em 2007, após a publicação do livro e do documentário Uma Verdade Inconveniente, ganhou o prémio Nobel da Paz em conjunto com o Painel intergovernamental para as Alterações Climáticas das Nações Unidas, insiste que este é o tempo de as pessoas, as empresas e as organizações tomarem em mãos o destino do planeta, obrigando os políticos a tomarem acções efectivas para uma redução de emissões de gases com efeito de estufa que evite os efeitos (ainda mais catastróficos do que os que mostrou) de uma subida de dois graus na temperatura média do planeta.
O antigo vice-presidente dos EUA atirou-se aos populismos anti-imigração que alimentaram o “Brexit” – e irritou-se, chamando cobardes aos políticos ingleses que não aceitam um segundo referendo – ou às guerras de poder nos EUA, em torno do muro na fronteira com o México. Mostrou imagens de uma América Central em seca com zonas sem colheitas há oito anos, de onde as pessoas – as tais da caravana cheia de “criminosos”, notou – fogem com fome. E o mesmo, insistiu, aconteceu na Síria, país que antes da guerra civil teve a pior seca em séculos, “documentadamente provocada pelas alterações climáticas”, apontou, gerando, entre outros factores, parte da vaga de refugiados que “assustou” a Europa.
Al Gore assinalou que África, um continente com graves problemas, vai ter, em meados do século, mais população do que a China e a Índia juntos. “E adivinhem para onde vão fugir estas pessoas”, perguntou retoricamente, antes de, retoricamente também, elevar a voz, para compelir a audiência a uma reflexão. “Não podemos deixar que isto seja o novo normal”, alertou, pedindo, a dado momento, que rezassem por ele, para conseguir fazer passar a mensagem que há quatro décadas o mobiliza.